Mãe Olga de Alaketu e a memória dos terreiros: patrimônio vivo no mês da Consciência Negra
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Por Ana Paula Miranda

✅28/11/2025 | 09:29
No início deste mês de novembro, quando se celebra a Consciência Negra, tive a honra de participar do “Seminário Iyalodê da Contemporaneidade em sua matripotência” como parte dos festejos do Centenário de Mãe Olga de Alaketu. Considerando que Ruy Barbosa, quando foi o Ministro da Fazenda do governo do Marechal Deodoro da Fonseca, na recém-proclamada República, determinou a destruição de todos os documentos do Ministério que estivessem relacionados ao regime de escravidão, é um fato raro poder saudar a história de uma yalorixá, que sempre conseguiu retraçar a sua ancestralidade. Trata-se de um reconhecimento da centralidade da memória nos terreiros e o papel decisivo que as mulheres negras exercem na preservação dessas tradições. Não se trata apenas de reverenciar uma liderança histórica, mas de compreender como sua trajetória ilumina dimensões fundamentais da vida nos terreiros: ancestralidade, resistência, organização comunitária e produção de conhecimento.
Mãe Olga (1925–2005) foi uma ialorixá cuja presença sintetizava duas forças essenciais: matrifocalidade – sua autoridade estruturava o terreiro como uma grande família centrada na figura materna – e matripotência – força sagrada que emana do princípio feminino. Sua liderança estruturava o terreiro como uma grande família, organizada em torno do cuidado, da reciprocidade e da transmissão do axé. Ao mesmo tempo, sua autoridade espiritual expressava a potência feminina que sustenta o mundo religioso afro-brasileiro. Em sua pessoa, o poder das mulheres no candomblé se mostrava social e cósmico, cotidiano e sagrado.
Falar de Mãe Olga é falar do terreiro como espaço de memória – memória que não é arquivo, mas experiência, gesto, canto, ritual, cheiro de folha, movimento de corpo. A memória nos terreiros se renova a cada obrigação, a cada toque de atabaque, a cada gesto de cuidado. É essa vitalidade que torna os terreiros patrimônios vivos, sustentados pela presença ativa de suas comunidades.
Quando pensamos nos tombamentos dos terreiros da Casa Branca (1984) e do Alaketu (2005) precisamos lembrar que o primeiro processo foi marcado pela dificuldade em romper com critérios eurocentrados, focados na materialidade e monumentalidade. Já o tombamento do Alaketu evidencia uma mudança epistemológica importante: o reconhecimento do patrimônio imaterial, da dimensão simbólica, dos saberes e práticas comunitárias que sustentam os terreiros. Esse deslocamento não é apenas técnico; é político. Reconhecer o terreiro como patrimônio é reconhecer a história negra, a agência das mulheres e a pluralidade das matrizes civilizatórias brasileiras.
Mas é preciso dizer que esse reconhecimento institucional só tem sentido quando construído juntamente com as próprias comunidades de axé. De nada serve tombar um terreiro se o Estado não compreende os valores que orientam sua manutenção: ancestralidade, hierarquia, respeito, reciprocidade, segredos, ética do cuidado. O patrimônio de um terreiro não é apenas sua arquitetura; é sua memória em movimento.
No presente, diante do avanço do racismo religioso, dos ataques físicos e simbólicos às casas de axé e das tentativas de silenciar expressões afro-brasileiras nos espaços públicos, a luta de Mãe Olga se mostra mais atual do que nunca. A violência contra os terreiros não é coisa do passado: ela se atualiza e se reinventa, muitas vezes articulando discriminação religiosa, disputa territorial e negação do direito à cidade e à cidadania.
Ao homenagearmos Mãe Olga de Alaketu neste novembro, reconhecemos que sua vida e sua obra reafirmam a potência da ancestralidade como força política. Ela é exemplo de como os terreiros constroem pontes entre tradição e contemporaneidade, entre o sagrado e o mundo público, demonstrando que a organização comunitária é ferramenta de resistência e também de afirmação da vida.
Assim, memória, para os povos de terreiro, não é lembrança distante: é prática diária. Cada gesto e cada rito afirmam que a herança africana que construiu este país segue viva, pulsante e capaz de reinventar futuro.

Ana Paula Mendes de Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.
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