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Uma Nova Preta Velha

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • há 7 dias
  • 4 min de leitura

Atualizado: há 4 dias

Por: Tati Brandão


26/04/2025 | 10:07


“Tudo dentro do tempo, minha filha!”

Desde criança, ouço essa frase nas conversas com as Pretas Velhas e Pretos Velhos: Vovó Baiana, Vovó Benedita, Vovó Bernardina, Vovô Leandro, Vovô José, Vovô Cipriano, Vovô Joaquim. Foram tantos diálogos e memórias que carrego desde a infância, na camarinha, do terreiro de Umbanda, Tenda Espírita Vovó Catarina, onde cresci. Participo deste lar espiritual desde antes mesmo de nascer — minha mãe já frequentava o local quando eu estava em sua barriga. Hoje, são 45 anos de caminhada.



Por muito tempo, minhas consultas foram acompanhadas por meus pais, que buscavam

bênçãos, orações e apoio para enfrentar as dificuldades da vida, celebrar conquistas ou

simplesmente agradecer. Mesmo depois que minha mãe se tornou ancestral, continuo pedindo

por ela e por nossa família. Sei que ela faria o mesmo.


Tenho um amor imenso e gratidão profunda por ter a permissão ancestral de conviver com

essas Entidades. Nossa relação é tão natural que o dia da consulta parece uma visita a

parentes queridos: sentimos saudade, queremos conversar por horas, tomar café com bolo e

compartilhar novidades. É uma troca entre mundos — humano e não humano — em harmonia,

como tudo na natureza.


Há anos, me encanto com a fumaça que dança do cachimbo, o som das orações, o ritual de

acender velas, os pontos riscados com pemba colorida e o sino que chama a cambone quando

precisamos de ajuda. Já vi tantas luas e amanheceres sentada naquelas banquetas brancas,

ouvindo com atenção cada conselho, desabafando medos, ansiedades e até alegrias. Até hoje,

quando faço uma pergunta ou choro na frente deles, recebo histórias e orações cheias de

sabedoria. São palavras que curam, envoltas no hálito ancestral que me abraça.


Essas histórias moldaram quem sou e constituem o repertório da minha vida. Nas conversas,

minha imaginação viaja por mundos que não aprendi nos livros da escola, nem são

reconhecidos pela ciência tradicional. São ensinamentos que usam a pedagogia da

simplicidade: não simplória, mas profunda. Eles entrelaçam sentimentos, lógicas e conexões

que parecem contraditórias, revelando a poesia escondida nos detalhes que a vida nos ensina

a ignorar.


Talvez por isso eu esteja aqui hoje: para compartilhar sabedorias que me foram transmitidas e

confiadas. E confiança traz responsabilidade de passar adiante, com ética e respeito o legado

que me caracteriza. Sou uma mulher negra, e quando digo “eu”, falo do eu-quilombo, ou seja,

para além da ideia de território — um conceito da historiadora Beatriz Nascimento, que

representa a comunidade intrínseca que vive em mim e da qual faço parte. Meu “eu-quilombo”

abriga existências, encruzilhadas e dimensões que conversam com as Entidades.


Nessas trocas ancestrais, sinto que um portal se abre no ato da minha relação de alteridade

com as Pretas e Pretos Velhos. Eles me ensinam a escutar sem julgar, a sentir sem pressa, a

viver o momento. Levei tempo para entender como esses ensinamentos se conectam ao

cotidiano, mas hoje vejo como transformaram minha postura: aprendi a decidir com várias

ferramentas, incluindo a intuição, na simplicidade mágica da camarinha. As dúvidas

diminuíram, a fé cresceu.


Fé que vivo e comprovo todos os dias. Repito para mim mesma e para outras pessoas com

frequência o que aprendi: “Tudo dentro do tempo, minha filha!”. E ao passar isso adiante, falo

de um lugar construído por décadas de experiências, poesia, espiritualidade e política. Aprendi

a perguntar menos, observar mais e até ajudo como cambone quando preciso. Nossa conexão

ultrapassa explicações.


Escrevivendo este texto de chegada aqui na Coluna — um pedido de licença e reverência aos

ancestrais —, percebi que as Entidades e as paredes da camarinha me viram crescer.

Testemunharam minha jornada até eu mudar de lado na conversa, tornando-me uma Nova

Preta Velha. Nova não pela idade (embora meus cabelos já sejam prateados), mas por ocupar,

em parceria, a cadeira daqueles que cuidam de nós há séculos.


Com a permissão ancestral, de ser seu cavalo, hoje, trabalho com a Vovó Bernardina,

emprestando meu corpo-quilombo para acolher quem busca afeto, orientação ou um simples

café espiritual. Seus pontos são riscados com precisão, suas orações têm força, e os

consulentes sempre voltam para agradecer ou desabafar — assim como eu fiz e ainda faço.

No próximo diálogo, entre eu e você, pretendo continuar conversando sobre as subjetividades e sentimentos que abrangem, fazem parte das relações, entre nós humanos e os não humanos,

Entidades, Orixás, entre outros.


Entendi que, desde a gestação, fui preparada para estar aqui e em outros locais que referencio

e reverencio nossa ancestralidade. Cada palavra que compartilho carrega o hálito das Pretas

Velhas e Pretos Velhos que me guiam e me protegem.


Vovó Bernardina e eu temos nossas singularidades, o que nos distingue e nos unem. Ela sabe

como me ensinar, me conhece melhor do que eu mesma, então, eu sigo aprendendo, com a

certeza tranquila de que... tudo está dentro do tempo!


Adorei as almas!

Salve as Pretas Velhas!

Salve os Pretos Velhos!

Salve as Novas Pretas Velhas!



Tati Brandão - AxéNews

Tati Brandão | Professora

Escutante de Infinitos

Umbandista, me considero uma Nova Preta Velha através do meu cotidiano de 45 anos em aprendizado com as Pretas e Pretos Velhos da Tenda Espírita Santa Catarina. Professora e Doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ.  |  Conselheira e Coordenadora do Núcleo de Estudos, Saberes e Pesquisa do Instituto Josefinas | Meus campos de interesses são: Ancestralidades Negras, Saúde, Mulheres Negras, Espiritualidade e Liderança Afetiva. [+ informações de Tati Brandão] 


Contatos de Tai Brandão:


 

 

Redes Sociais: Instagram  |  Linkedin



Artigo de Opinião: texto no qual o(a) autor(a) expressa e defende suas ideias, interpretações e vivências sobre determinados temas. As opiniões aqui apresentadas são de responsabilidade do(a) autor(a) e compõem a diversidade de vozes que o AxéNews valoriza e apoia.


1 comentário


Julio C Rodrigues
Julio C Rodrigues
há 6 dias

Linda reflexão reverenciando o poder da herança ancestral em sua vida.

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