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O Embranquecimento no Candomblé: Entre o Apagamento e a Resistência

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • 2 de set.
  • 10 min de leitura

Por: Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá


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02/09/2025 | 08:19


Candomblé, ancestralidade e resistência: São mais de três décadas de memórias e vivência


Sou um homem de axé, babalorixá ainda muito novo com apenas trinta e quatro anos de iniciado e quase 40 anos vivendo e atuando nas comunidades tradicionais de matriz africana. Quando falo sobre o embranquecimento do Candomblé, faço isso a partir da minha vivência direta, da observação e da prática cotidiana nos terreiros. Não estou aqui para julgar ninguém, nem para ensinar regras: falo daquilo que presenciei, do que senti e do que aprendi ao longo de décadas de prática. Minha missão é preservar a memória, o axé e a história de um povo que resistiu por séculos para manter viva a espiritualidade afro-brasileira.


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O embranquecimento se manifesta de formas sutis e profundas. Um dos exemplos mais claros é a representação de Yemanjá. No Brasil, ela é frequentemente retratada como mulher branca, esguia, de cabelo liso e vestida de azul. Na Nigéria e em outras regiões da África, no entanto, ela é celebrada como mulher negra, de corpo robusto, ligada às águas e à fertilidade. A diferença não é apenas estética; é histórica, cultural e espiritual. Reconhecer a negritude dos orixás é reconhecer a origem do Candomblé, é valorizar a memória de um povo que resistiu à escravidão, à perseguição e ao racismo religioso para manter o axé vivo.


Dentro do terreiro, o embranquecimento também se manifesta de forma silenciosa:

adaptando cantos, mudando trajes, alterando oferendas ou aceitando imagens de orixás distorcidas. Presenciei isso em casas de axé que, por necessidade de sobrevivência frente à repressão histórica, suavizaram rituais para proteger a comunidade. Embora essas adaptações tenham sido estratégias de proteção, elas carregam o risco de diluir a força ancestral e apagar memórias essenciais.


Nos anos de prática, vivi momentos críticos em que a tradição foi ameaçada: visitas

inesperadas de autoridades, preconceito de vizinhos, pressões de mídia e tentativas de “modernização” de festas populares. Em cada situação, precisei agir com cuidado,

mostrando pelo exemplo e pelo axé que a ancestralidade não podia ser negociada. Foi

assim que aprendi que a preservação do Candomblé exige firmeza, sabedoria e paciência: resistir não significa confrontar, mas ensinar pela vivência.


As iniciações são um dos espaços mais sagrados de preservação do axé. Cada detalhe, do preparo do espaço às oferendas, das roupas aos cantos e danças, é cuidadosamente conduzido para manter a tradição viva. Lembro-me de cada momento de orientação aos novos filhos e filhas de santo, transmitindo não apenas rituais, mas valores, história e memória. Crianças aprendendo a entoar cantos em iorubá, jovens participando da preparação de obrigações, adultos conduzindo oferendas com respeito profundo: tudo isso reforça a ancestralidade negra e fortalece o axé.


Entre as festas e obrigações que conduzi, destaco o Olubagé, os ajoduns e as obrigações de Exú,Oxóssi,Ogum,Logun edé e Ossain, festa das yabás,Xangô,Águas de Oxalá. Nessas celebrações, cada gesto de cuidado — desde o preparo dos alimentos e ervas até a disposição dos animais e dos objetos sagrados — carrega memória e axé. Vi a comunidade inteira unida, filhos e filhas de santo transmitindo saberes e fortalecendo o vínculo com os antepassados. Cada canto, cada dança e cada oferenda era uma reafirmação da força africana e um ato de resistência contra o embranquecimento.


Em algumas situações, presenciei pessoas externas ou brancas assumindo posições de

influência nos terreiros sem compreender a ancestralidade negra da tradição. Nessas

ocasiões, a orientação deve ser paciente, conduzida pelo axé e pelo exemplo, mostrando que preservar a negritude dos orixás não é exclusão, mas consciência histórica e espiritual. A preservação do Candomblé é responsabilidade de todos que compartilham do axé, e não apenas daqueles iniciados há décadas.


Ao longo dos anos, testemunhei pressões externas em festas populares, novelas, filmes e redes sociais. Muitas vezes, o Candomblé foi retratado de forma embranquecida ou suavizada para agradar plateias externas. Nesses momentos, nossa ação foi dupla: resistir mantendo a tradição viva dentro do terreiro e educar, pelo exemplo e pelo axé, mostrando à comunidade externa o valor da ancestralidade negra e a autenticidade da tradição.


Em cada ritual, o cuidado com os elementos sagrados ,alimentos, ervas, animais, objetos, cantos e danças é um ato de preservação do axé e da memória ancestral. Cada filho ou filha de santo que aprende, compreende e respeita isso fortalece não apenas o axé individual, mas a memória coletiva de um povo que atravessou séculos de violência, opressão e apagamento para manter viva a espiritualidade afro-brasileira.


Ao longo da minha trajetória, vi a importância de preservar a ancestralidade também na educação das crianças e jovens. Ensinar-lhes os cantos, a história dos orixás, os

significados das oferendas e dos rituais é plantar sementes de resistência. Cada gesto

ensinado e cada ritual conduzido com autenticidade é uma forma de proteger o Candomblé do embranquecimento e garantir que as futuras gerações compreendam sua origem africana.


Quando alguém se sente desconfortável ao ouvir que Orixá é negro ou que o Candomblé precisa resistir ao embranquecimento, quero que fique claro: não se trata de crítica pessoal, nem de ataque. Trata-se de compartilhar vivência, experiência e memória. Falar sobre a negritude dos orixás é reafirmar a história, o axé e a dignidade de um povo que resistiu e continua resistindo.


Depois de quase 40 anos de vivência, afirmo com convicção: o Candomblé não pode ser embranquecido, não pode ter sua ancestralidade apagada e não devemos permitir que a força dos orixás seja distorcida. Defender a negritude dos orixás é defender a história, o axé e o futuro de cada filho e filha de santo. É manter viva a resistência que atravessou séculos e garantir que, enquanto houver Candomblé, haverá memória, axé e um povo que não se deixa apagar.


Minha experiência me ensinou que cada gesto, cada oferenda, cada canto, cada xirê e cada obrigação é um ato de preservação da ancestralidade. Cada filho e filha de santo que compreende e respeita isso fortalece não apenas o axé individual, mas a memória coletiva do nosso povo. Essa é a minha verdade, essa é a minha experiência, e é com esse axé que sigo, reafirmando todos os dias a força, a resistência e a negritude dos orixás.


O Candomblé Que Resiste: Memória Negra em Tempos de Embranquecimento

Quando olho para as imagens de Yemanjá que circulam no Brasil, vejo um retrato que não corresponde à verdade ancestral. Retratada como uma mulher branca, esguia, de longos cabelos lisos e vestida em azul, Yemanjá se torna quase irreconhecível diante da sua essência africana. Na Nigéria, de onde vem a raiz dessa tradição, ela é reverenciada como uma mulher negra, de corpo robusto, ligada à fertilidade e às águas que sustentam a vida. Essa diferença não é apenas estética, é fruto de um processo de embranquecimento que busca apagar a negritude da nossa espiritualidade. Orixá é negro. E negar essa realidade é negar a história, a ancestralidade e a resistência que sustentam o Candomblé até hoje.


Quando trago essa reflexão, não falo apenas da imagem de Yemanjá, mas de um

movimento mais profundo que marcou a nossa história: o embranquecimento do

Candomblé. Esse processo foi resultado de perseguições, pressões sociais e racismo

religioso que tentaram moldar a nossa fé para caber dentro de padrões aceitos pela

sociedade eurocêntrica. Muitas casas se viram obrigadas a esconder seus atabaques,

trocar seus trajes, disfarçar seus ritos e até mesmo sincretizar nossos orixás com santos católicos para garantir sobrevivência. Mas essa adaptação, apesar de estratégica em tempos de violência, também abriu espaço para o apagamento das nossas raízes africanas.


Não podemos esquecer que essa história de embranquecimento não começou por acaso. No tempo do Estado Novo, por exemplo, os terreiros eram perseguidos, precisavam de autorização da polícia para funcionar, e muitos foram invadidos, fechados e tiveram seus objetos sagrados apreendidos. Para sobreviver, algumas casas foram obrigadas a adotar uma aparência mais aceitável aos olhos da sociedade dominante. Assim, escondiam os atabaques, suavizavam os rituais, trocavam roupas tradicionais e, em muitos casos, assumiam imagens e práticas que nada tinham a ver com a essência africana da nossa religião.


Essas escolhas foram, de certa forma, uma estratégia de resistência diante da repressão. Mas também abriram caminho para que o nosso sagrado fosse moldado segundo padrões brancos, e não conforme a verdade ancestral. Foi assim que muitos orixás passaram a ser representados por santos católicos ou por figuras de pele clara, distantes da realidade africana. Esse sincretismo imposto e essa estética embranquecida tentaram silenciar a potência da nossa negritude.


Nos dias de hoje, o desafio continua. Ainda encontramos dentro dos terreiros a presença de uma branquitude que, muitas vezes, ocupa lugares de poder sem reconhecer o peso histórico e espiritual da nossa tradição. Não se trata de excluir ninguém, mas de entender que o Candomblé nasceu da resistência negra, da dor e da força de um povo escravizado que fez do axé sua ferramenta de liberdade. Quando essa origem é desconsiderada, quando símbolos são embranquecidos e quando a voz do povo negro é abafada, estamos diante de mais uma forma de racismo religioso.


No meu livro Renovação Sagrada, eu falo justamente sobre essa necessidade de

reconectar o Candomblé com sua verdadeira essência africana. Não é apenas uma questão estética, mas um compromisso com a memória, com a dignidade dos que vieram antes e com as futuras gerações. É uma renovação que não nega a história, mas que a ressignifica para que o nosso axé continue vivo, forte e autêntico.


Resgatar o Orixá negro, valorizar nossas roupas, nossas línguas, nossos cânticos e nossas práticas é afirmar que a espiritualidade africana não precisa pedir licença para existir. Essa é a verdadeira resistência. E é nessa força que seguimos, reerguendo a nossa tradição contra qualquer tentativa de apagamento.


Falar do embranquecimento no Candomblé não é apenas apontar distorções históricas, é assumir o compromisso de lutar contra um sistema que insiste em apagar a negritude onde ela é raiz, força e sagrado. O nosso dever é manter viva a memória dos que resistiram para que hoje pudéssemos cultuar nossos orixás em liberdade, ainda que essa liberdade seja constantemente ameaçada pelo racismo religioso.


Orixá é negro, e afirmar isso é também afirmar que o Candomblé é patrimônio da

resistência africana no Brasil. Cada cântico entoado, cada xirê realizado, cada iniciação feita dentro da tradição reafirma que nossa fé não pode ser moldada para agradar olhares externos. O que nos sustenta é a ancestralidade, é a força que corre no sangue e na memória do nosso povo.


No Candomblé, o embranquecimento é uma realidade que afeta tanto a preservação da nossa ancestralidade quanto a visibilidade dos nossos filhos e filhas de santo negros. Ele se manifesta de várias maneiras, muitas vezes de forma sutil, mas sempre com impacto profundo. Um exemplo é quando nomes africanos são trocados por nomes “brancos”, apagando referências históricas e culturais. Também percebemos quando os rituais e cantos em línguas africanas, como o iorubá, são substituídos pelo português, tornando nossas práticas mais fáceis de entender para o público externo, mas menos autênticas.


A mídia também contribui para esse embranquecimento, dando destaque apenas a filhos e filhas de santo de pele clara, como se fossem os únicos representantes “aprovados” do Candomblé. Nas casas de axé, há uma pressão para que tudo siga padrões ocidentais: roupas padronizadas, arquitetura e decoração inspiradas na estética europeia, e até mudanças nos trajes e adereços sagrados. Instrumentos, danças e cantos tradicionais muitas vezes são suavizados ou substituídos por elementos mais “aceitáveis” socialmente, perdendo parte da força e da potência da tradição africana.


Outro ponto é a alteração de hierarquias e cargos dentro do terreiro, favorecendo pessoas de pele clara, enquanto algumas etnias ou linhagens africanas são minimizadas ou esquecidas. Até a alimentação sagrada usada nas oferendas sofre mudanças, substituindo frutos e raízes tradicionais por alimentos industrializados, afastando-se do que a tradição ensina. A participação feminina também é afetada, quando mulheres negras são invisibilizadas em cargos de liderança, enquanto padrões de beleza eurocêntricos ganham destaque.


Além disso, há uma tendência de tornar nossas casas e rituais mais “decorativos” ou

“turísticos”, pensando na aceitação de visitantes ou na imagem que a sociedade externa espera. As cerimônias podem ser adaptadas, com horários alterados ou elementos sagrados minimizados, e até a nossa história africana é apagada, transformando o Candomblé em algo folclórico e superficial. Até instrumentos, cantos e danças podem ser substituídos por gravações ou versões mais leves, perdendo a força que carregam da ancestralidade.


Quando refletimos sobre o embranquecimento nas religiões de matriz africana, percebemos que ele não se manifesta apenas na estética ou nos rituais, mas também na linguagem e na forma como somos incentivados a nos expressar. Por exemplo, na tradição católica, é comum ouvirmos a expressão “Ave Maria”, que vem da saudação do anjo Gabriel à Virgem Maria, na Anunciação, e significa “Salve, Maria” ou “Alegra-te, Maria”. É uma forma de devoção consolidada, repetida e legitimada historicamente.


No Candomblé, deveríamos expressar nossa fé de forma equivalente, mas com nossa

própria linguagem sagrada: dizendo “Kabiyesí Oxum”, “Kabiyesí Iemanjá”, “Kabiyesí Oxalá”, em iorubá, como forma de saudação, reverência e oração aos orixás. Apesar de exercer exatamente a mesma função de respeito e devoção que o “Ave Maria”, essas expressões ainda enfrentam preconceito e estranhamento fora dos nossos espaços de fé.


Essa diferença nos revela como o embranquecimento atua silenciosamente: ele legitima uma linguagem de devoção e naturaliza a fé europeia ou cristã, enquanto nossa religiosidade, quando se expressa em iorubá, ainda é vista como “estranha” ou “fora de lugar”. Essa percepção faz com que muitas pessoas afro-brasileiras sintam a necessidade de suavizar ou justificar suas expressões de fé.


Resgatar e afirmar com coragem nossas palavras sagradas ,cada “Kabiyesí Xangô,Ore

yeyeo Oxum ”, cada “odô iyá Iemanjá”, cada “Epa Oxalá”,é um ato de resistência e de

afirmação identitária. É a demonstração de que nossa fé é legítima, profunda e tão digna quanto qualquer outra. Precisamos que o mundo aprenda a ouvir, respeitar e valorizar as expressões de fé afro-brasileiras na mesma medida que respeita outras tradições consolidadas.


Em resumo, o embranquecimento no Candomblé não é apenas estético ou visual, ele

interfere na prática religiosa, na preservação da cultura africana e na valorização da

ancestralidade negra. É uma forma de apagamento que nos afasta de nossas raízes e cria uma narrativa onde o que é branco é valorizado e o que é negro é invisibilizado.

Reconhecer essas práticas é o primeiro passo para fortalecer nossa tradição, reafirmar nossa identidade e garantir que o Candomblé continue sendo um espaço de potência, cultura e ancestralidade viva.


Por isso, conclamo meus irmãos e irmãs de axé a se unirem nesse movimento de resgate e valorização da nossa essência. Não basta apenas praticar o rito, é preciso reconhecer o sentido político e cultural de cada gesto, de cada palavra e de cada símbolo. Quando nos levantamos contra o embranquecimento, estamos defendendo não apenas a nossa religião, mas também a dignidade da nossa história e o futuro das próximas gerações.


Que possamos seguir firmes, renovando o sagrado todos os dias, sem medo de afirmar quem somos. Porque enquanto houver Candomblé, haverá resistência, haverá memória e haverá um povo que não se deixa apagar.




Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá - AxéNews

Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá

Eu sou Paulo Aurélio Carvalho Lopes, nasci em 12 de agosto de 1968, em Simões, Piauí. Sou o primogênito de uma família de seis irmãos, criado por minha mãe solo, Maria do Socorro Carvalho e o apoio de meus avós Dona Maria e Seu José... [+ informações do Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá]



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