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Jurema e Palmares, Raízes Ancestrais que se Reconhecem: O 2 de Julho que os Livros não contam

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • 2 de jul.
  • 4 min de leitura

Por: Olomidê Lessa

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✅ 02/07/2025 | 18:25


O 2 de julho é reconhecido oficialmente como a data da Independência da Bahia. No

entanto, para além da história oficial, essa data carrega, especialmente no Nordeste, um sentido profundo e ancestral: é também o Dia dos Caboclos. Mas por quase todo Brasil é comum a data ser celebrada com cantos, torés, louvores e oferendas que reafirmam a presença viva dos encantados e a força dos povos originários na formação cultural e política do país.


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Celebrar o 02 de julho, portanto, é celebrar a vida e a resistência dos povos que sustentam as raízes mais profundas do Brasil. É também um ato de repactuação das lutas históricas que povos indígenas e africanos travam conjuntamente desde a invasão colonial, quando muitas vezes foi justamente a aliança entre africanos sequestrados e povos originários que possibilitou a sobrevivência frente ao extermínio e à escravização. Como afirma Kabengele Munanga, “a resistência negra no Brasil nunca foi isolada: ela se fez, muitas vezes, em aliança com os indígenas, criando formas de insurgência e comunidades de liberdade, como os quilombos e os mocambos, em que os mundos se encontraram para sobreviver.” Essa memória compartilhada não pode ser esquecida – ela precisa ser ensinada, reconhecida e vivida como parte indissociável do que somos enquanto país.


No Rio Grande do Norte, esse reconhecimento ganhou força com a instituição do Dia

Estadual da Jurema Sagrada, resultado da mobilização dos povos de terreiro e dos

movimentos de resistência espiritual. Contudo, a data também marca um episódio de luto e denúncia: o assassinato de um indígena durante um ritual da Jurema, revelando o racismo estrutural e a intolerância religiosa ainda presentes no país. A violência contra o culto da Jurema é uma agressão ao direito à fé, ao território e à continuidade dos saberes tradicionais. Como afirma o Mestre de Jurema e Babalorixá Cláudio Oliveira, “com disposição e preocupação com os mais novos [...] há em nós uma necessidade de conhecer e prosseguir em conhecer, porque a Jurema é uma ciência continuada.” É esse saber sagrado, transmitido pelas gerações, que continua sendo ameaçado.


Esses festejos não são apenas manifestações religiosas: eles resgatam uma verdade

histórica sistematicamente silenciada. Povos indígenas, africanos escravizados, negros libertos e quilombolas tiveram papel central na luta pela Independência da Bahia em 1823. Lutaram lado a lado contra o domínio português, defendendo não só a autonomia política, mas também a dignidade de seus territórios e modos de vida. Muitos desses combatentes foram excluídos da história oficial, seus nomes apagados, suas contribuições ignoradas.


Por isso, celebrar o 02 de julho como Festa dos Caboclos é também um ato de justiça

ancestral. É reconhecer que a Independência não foi construída apenas pelas elites

políticas, mas por corpos negros e indígenas que resistiram com flechas, facões e

encantamento. Nas comunidades de terreiro, essa memória se mantém viva nos pontos cantados, nos toques de maracá, nas folhas sagradas e nas palavras dos mestres da Jurema. A figura do Caboclo é central nesse culto. A Jurema, além de árvore sagrada, é ciência, cura e espiritualidade. Suas raízes atravessam séculos de perseguição e resistência. Por isso, em muitas dessas comunidades, o 02 de julho é dia de defumação, oferenda e reafirmação da aliança entre vivos e encantados.


Essas celebrações são também atos políticos. Diante de séculos de epistemicídio, racismo e colonialidade, os rituais aos Caboclos reafirmam a autonomia cultural das comunidades de terreiro e suas formas próprias de produzir conhecimento, saúde e dignidade. E é por isso que garantir a implementação efetiva da Lei 11.645/2008 — que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas — é uma urgência. Não se trata de uma concessão, mas de um direito e de uma reparação histórica. Como afirma a escritora e ativista indígena Eliane Potiguara, “a educação é a arma mais poderosa que temos para descolonizar mentes e corações.” E essa descolonização começa pelo reconhecimento das epistemologias dos povos originários e africanos como centrais na formação do Brasil. Nesse mesmo sentido, a educadora Nilma Lino Gomes nos lembra que “a educação é um território de disputa. E é nesse território que precisamos lutar para incluir as nossas histórias, as nossas vozes, os nossos saberes.”


Incluir as histórias da Jurema, dos Caboclos, das lideranças indígenas e das comunidades tradicionais nos currículos escolares significa romper com o silêncio colonial e construir uma educação antirracista, plural e enraizada em nossa realidade. Os saberes ancestrais indígenas são fontes de cura, de cuidado com o corpo e com a coletividade, de equilíbrio com a natureza. E suas lutas se entrelaçam com as lutas dos povos tradicionais de matriz africana, numa história comum de resistência e sabedoria.


Ambos enfrentaram — e ainda enfrentam — estruturas de apagamento, preconceito e

violência. Mas também compartilham um compromisso comum com o bem viver, o

encantamento e a força de suas ancestralidades. Celebrar o 02 de julho, portanto, é muito mais do que lembrar uma data cívica: é afirmar que a verdadeira liberdade só floresce quando caminha com os encantados, com os povos da floresta, com os quilombos e com os terreiros. É nesse solo sagrado que resistimos — e seguimos florescendo.



Olomidê Lessa - AxéNews

Olomidê Lessa

Omobirin de Iemanjá e Oxum, pertencente ao povo Iorubá, nação Ketu e Juremeira. Especialista em Ensino de História da África e Educação Étnico Racial. Educadora Popular com licenciatura em Letras. Coordenadora Nacional de Comunicação do Fórum Nacional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSAN-POTMA). [+ informações de Olomidê Lessa]



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Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews.


 
 
 

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