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E o Reconhecimento? Onde mora o direito do povo de axé?

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    WR Express
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Por: Yakekere Katiuscia de Yemanjá

28/04/2025 | 06:22


Quem acompanha meus escritos por aqui, sabe bem que um dos temas que movem meu dizer é justamente a luta pela memória e por direitos secularmente negados à população negra, mais especificamente a inserção das comunidades tradicionais negras de axé nas políticas públicas vigentes de um Estado de direito.


Essa trajetória por inserção é de longe algo novo, mas me parece que precisa ser secularmente afirmado, reafirmado e lutado, lutado, lutado.



Reconhecer… mas o que precisamos reconhecer?

O que sabemos é que, apesar de hoje parecer que todos sabem que as comunidades negras

foram responsáveis por muitas políticas que tomaram forma institucional no Estado, políticas

que atualmente atendem a uma grande parte da população, lamentavelmente, tem a

compreensão dessa legitimidade muito, mas muito, longe de ser óbvia como deveria.


Já não é de hoje que nós, comunidades tradicionais negras e de axé, vivenciamos negligências

em diversos setores: jurídico, educação, saúde, assistência social…

Os Conselhos reguladores, as diretorias de secretarias governamentais, as diretorias de postos,

hospitais e escolas estão repletos de pessoas cujas filosofias de vida são aquelas que

predominam “Uma história única”, e como Chimamanda já havia nos alertado, o perigo mora aí.


É bem verdade que temos um grupo considerável de pessoas negras e de axé em posições não

antes ocupadas, mas é também fato que estas lutam com sua própria alma para subsistir nestes espaços e tentar minimamente rasurar séculos de uma estrutura colonial, dura, incrustada que não, meu povo, não sairá assim tão facilmente.


Mas e o Reconhecimento?


Já percebemos como canta a canção que não veio e nem virá das mãos de Isabel! Ainda que

tenhamos na estrutura social uma síndrome de Isabel que passeia e insiste em querer assinar

papel para inglês ver.


E não é só o Morro do Dendê, meu povo, que é ruim de invadir. Essa política tão igual à da

Colônia tem suas veias sustentadoras ainda firmes. E é por isso que muitos de nós ainda nos

valemos da boa e velha estratégia de nossos e nossas agbas.


Usando silêncio como o senhor da terra, Atotô! Pisando chão firme e com cautela para as folhas e galos não tintinarem e espantar nossa caça, assim ensina Odé!

Com observação atenta e à distância, altiva com a nossa grande mãe Nanã.

Fico mesmo pensando em que momento nós acreditamos que seríamos legitimados por grupos que nos odeiam há séculos, grupos que não vão ceder nem tampouco negociar seus espaços de poder para o povo da feitiçaria, povo do tambor, povo cuja história foi negada e silenciada, povo que o povo deles amarraram com grilhões e disseram ser inferiores. Nossos saberes serviram e servem de base para a produção de conhecimento social desde que

não tenha nossos nomes. Nossas curas, nossos unguentos, nossas medicinas serviram e servem para tratamento desde que ganhem um nome gourmetizado e não leve nossos rostos, vestes e espaços.


Não se esqueçam de que várias maternidades públicas e ditas humanizadas se valem das

técnicas que nossas agbas usavam; de que floral é mais vendido que água, desde que não

tenha cara de erva quinada, nem chá ou garrafada saída das nossas casas. Canela de Velho, como sinalizou Iya Wanda de Omolu certa vez num diálogo nosso, sempre foi folha cantada e usada por nós, hoje ela tá aí usurpada pela indústria farmacêutica, envelopada em pote bonito, e nós, direitos autorais? É claro que não.


Eu me lembro de um curso de vaporização uterina, para nós banho de assento, enfim… de ser

roubado e não ter reparação, a gente sabe bem. Não consigo e nem posso esquecer que se não fosse as sabedorias das mãos ancestrais nós não estaríamos aqui, porque acesso à justiça, saúde e educação nunca foram feitos para nós.


Hospital para preto? Escola para preto?

Justiça para preto?

Lembro bem da história de tia Ciata que curou o presidente Venceslau Brás de erisipela. Curou

com quê? A mais pura magia negra de saber, conhecimento e estudo bioquímico! Sim, medicina!


Sim, química! Sim, biologia e ecologia.


Além de fazer atendimento médico, Tia Ciata fez política pública cultural e de segurança pública. Numa tacada só, o ventre transformador curou a perna do branco dominador e ainda conquistou a não invasão do espaço do samba, do seu culto, protegendo os seus e garantindo um emprego para seu companheiro colocar “branco colonizador” no bolso e comida na mesa.


E vocês aí me vem bater palmas para vapor no útero, para canela de Velho enlatada, para

reconhecimento das nossas práticas barganhado nas beiras e eiras de um projeto de poder que

não vai sustentar o ejó, porque quando a vara é curta, a onça pega! E as onças do

fundamentalismo sabem muito bem como pegar e como cobrar.


Passou aqui por mim outra lembrança, essa agora triste dos tempos atuais, o caso de um irmão de axé que não pode receber assistência religiosa hospitalar como garante a lei, porque claro a religião era a nossa do povo preto de axé. Perdemos o irmão, e sua comunidade pode ter sido invadida pelo sentimento e se nós tivéssemos conseguido…

Aí vou ter de citar a minha revolta ao ter visto orações cristãs de todos os lados aos entubados da pandemia! Ora, meu povo também sofreu e quem foi entoar nosso cântico? Quem???


Tem um pouco mais de semana que Tainá de Oxumarê, neta de Mãe Márcia Marçal, grande

sacerdotisa e uma referência, foi brutalmente violentada ao ter seus fios de conta, sua conexão com os ancestrais, retirados de si dentro do hospital Gafree Guinle. Ação covarde, cruel, explicada apenas pela doença do ódio racial que muitos espaços religiosos cristãos ainda pregam.


E tem menino nosso perdendo a vida por racismo na escola, disfarçado de bullying, que é

disfarçado de traquinagem… conhecemos bem essas traquinagens coloniais de morte.


E o reconhecimento?


Recentemente uma parte do governo municipal vigente tentou que práticas em saúde

tradicionais de matriz africana fossem reconhecidas no âmbito municipal. Não aguentou três

dias de sustentação. A resolução, apenas uma resolução, foi totalmente desconsiderada por um movimento nem tão robusto da parte onça da política que sabe pegar e cobrar.


Não quero entrar nos meandros da fragilidade da resolução em termos de sustentação, mas

quero mesmo que entendamos que mais que nunca precisamos ouvir nossos e nossas agbas.

Estamos cansados de saber o que somos e o tamanho que temos. Não acho que devemos

permitir que nossas práticas sejam nem enlatadas , nem gourmetizadas , menos ainda ter uma pseudo legitimidade a qualquer custo.


O que eu não só acho como sei que é papel do Estado ofertar direitos básicos constitucionais,

inclusive a nós. Também sei que nossos territórios promovem saber! Que somos locais de curas, inclusive para a doença do mundo decadente e falido, que das mãos dos nossos e nossas antepassados saíram remédios, educações e culturas.


Sabemos também que quando nem se pensava no modelo de saúde que hoje chamamos de

SUS e tem a potência que tem, a gente já era terreiro em saúde! O que nós todos deveríamos bradar aos quatro cantos do mundo é o direito de assistir os nossos, que o Estado não pode mais negligenciar nossos corpos pois já não estamos mais fora na constituição, logo devemos ser respeitados em nossos princípios culturais e de religiosidade.


E sim, o reconhecimento tem de vir, para nossas casas, para o que fazemos neste chão, não só

por tudo que já demonstramos historicamente, já que isso por si só não basta, mas porque

existimos enquanto sujeitos de direito nesta sociedade.


Ficamos com a Justiça de Xangô nesse mundo que não sabe o que é felicidade!

E como Exu é ética, nosso tempo vem, ah, ele vem! Eu já escuto teus sinais.


Axé!


Katiuscia de Yemanjá - AxéNews

Yakekere Katiuscia de Yemanjá

IYÁ Katiuscia de Yemanjá, mulher de terreiro, mãe, Yakekere do Rei Xangô, da família Òbá Labi, corpo-memória cabocla-nordestina ; forjada pela força e o afeto das muitas mulheres. “De anel no dedo e aos pés de Xangô”, mestre em linguagens pela UERJ, professora da educação básica pública e periférica, pesquisadora e defensora dos saberes ancestrais na diáspora. [+ informações de Yakekere Katiuscia de Yemanjá]



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Artigo de Opinião: texto no qual o(a) autor(a) expressa e defende suas ideias, interpretações e vivências sobre determinados temas. As opiniões aqui apresentadas são de responsabilidade do(a) autor(a) e compõem a diversidade de vozes que o AxéNews valoriza e apoia.


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