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Um olhar descolonizado sobre a consulta oracular

Por: Babalorixá Márcio de Jagun



18/05/2024 | 15:48


Para um uso descolonializado do Oráculo, é fundamental que consulente e oficiante tenham, como premissa, a autonomia de Orí. Ter noção de que a vida é um trajeto escolhido e dirigido cotidianamente e não um “jogo de cartas marcadas”, torna-se insular. Saber que a morte não afasta as consciências de vivos e meta-vivos, é determinante para entender esse mecanismo de reversibilidade do tempo. No trato oracular, as memórias vivas são invocadas, sentidas, desarquivadas do corpo e do espírito. A “mesa de jogo” é a geografia do reencontro (o Eu, a ancestralidade e o odù). O sistema oracular ioruba é organizado a partir do corpus da sabedoria de Ifá. São muitos os oráculos utilizados no Candomblé nagô: o mẹ́rìnndílógún, o obì, o orógbó, a àlùbọ́sà, entre outros. Todos os Oráculos e seus manuseios, embora possam diferenciar, tomam, por base, o corpus de Ifá.



No passado, a dinâmica diante do Oráculo de Ifá era a seguinte: o Olhador manuseava o Oráculo e, após identificar o odù que se apresentava na caída, recitava um dos poemas correspondentes àquele signo. Caberia ao consulente interpretar como tal ensinamento poderia ser aplicado ao seu momento. Somente depois desse instante, o Olhador poderia, eventualmente, comentar e prescrever algo, ou seja, a autonomia do consulente era convocada para entender o problema e, assim, integrar a construção de possíveis soluções.


Existem cerca de 600 ẹsẹ (poemas) para cada um dos 256 odù, totalizando, aproximadamente, 153.600. Em seu gênero literário, reside um estilo metafórico e uma proposta pedagógica. Para decifrá-los, adaptando aquela realidade cultural à nossa, é preciso empregar princípios da semiótica aplicados à ifalogia.


O exame oracular integra os elementos da natureza, considera as imperfeições humanas e compreende as ambiguidades dos seres, do divino, dos destinos. O Oráculo é um exame. Este “aparelho”, contudo, não se restringe a detectar aspectos do físico. Além destes, ele aponta questões emocionais e energéticas. Trata-se, portanto, de uma análise bem mais abrangente e sofisticada do que uma tomografia computadorizada, por exemplo, que só é capaz de mostrar o estágio do agora (ainda que de forma profunda). Por exemplo: o laudo de uma tomografia identifica, neste momento, uma lesão no joelho. Entretanto, não consegue apontar as causas havidas no passado tampouco pode detectar como esta lesão ficará no futuro. Na análise oracular, além de identificar a “lesão”, é possível rastrear sua causa e, ainda, projetar como será sua evolução no futuro. Através do Oráculo, podemos investigar eventos passados, que propiciam eventos do presente, como traumas, episódios vivenciados, sentimentos e, da mesma forma, ele viabiliza olhar para o esboço de um futuro. Este, porém, será sempre dependente, não de vontade divina, mas das escolhas e práticas do consulente. Logo, o futuro visto no Oráculo será sempre uma minuta, um rascunho cujo texto final depende do autor.


A análise oracular parte do pressuposto de que há dois corpos em estudo: o físico (ara) e o metafísico (ẹnìkéjì). É realizada, então, uma complexa anamnese que considera a sincronicidade do tempo: passado, presente e futuro, bem como elementos do material e do espiritual. Há uma ressignificação do destino que não é pensado como um pontilhado de decisões divinas, mas como uma escolha do próprio Ser pensante e agente.

O Oráculo não é um lugar de aprisionamento pelo medo, pelo determinismo divino nem pela manipulação/exploração no exercício do ofício sacerdotal.


O Oráculo é um lugar onde se deve entender a autonomia na autogestão da vida, na liberdade das escolhas.


Muito se imagina que o Oráculo deva revelar tudo. O “tudo” é relativizado pela filosofia ioruba na medida da relevância e da pertinência das informações para o momento. Primeiro, há que se entender que a dinâmica oracular é divinatória e não adivinhatória. Ademais, como ensina o aforismo ioruba: “Ninguém vê o rosto de Ọ̀rúnmìlà”. Ou seja, a sabedoria (personificada em Ọ̀rúnmìlà) não precisa mostrar-se por completo. A sabedoria oracular, portanto, só mostra o que é devido, necessário e útil tanto ao consulente quanto ao Olhador. A dinâmica se estabelece a partir de uma triangulação oracular entre consulente, Olhador e divindade, pois estes três elementos precisam estar em sintonia, coadunados.


(trecho do livro “Filosofia Descolonial do Candomblé Nagô” – Márcio de Jagun, Litteris, 2024).



Babalorixá Marcio de Jagun

Márcio de Jagun é escritor e dicionarista especializado em gramática ioruba, autor de sete obras publicadas. Dentre elas, Orí a Cabeça como Divindade (Litteris, 2015).

Contato: ori@ori.net.br



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