Preto velho para além da umbanda
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Por: Joana Bahia

✅ 29/05/2025 | 06:58
Há uma ideia de que o preto velho pertence a umbanda, porém o panorama religioso atual é outro. A pesquisa da antropóloga Monica Souza, realizada em 2006, mostra que o preto velho existe em muitos lugares e ritos além da umbanda. Em sua etnografia na cidade do Rio de Janeiro, a eficácia simbólica do preto velho se amplia, podemos encontrá-lo na casa de candomblé, no Daime, nos grupos de estudos kardecistas e espiritualistas mantêm, nos respectivos locais de culto, espaço para a ação dos cultos aos antigos “escravizados”. Sacerdotes tem seus espaços religiosos separados e tocam tanto para umbanda quanto candomblé, mantendo as entidades das quais muitas vezes começaram suas vidas espirituais. Lembramos do Pai Jair de Ogum, falecido em 2020, que para atender à dupla espiritualidade, ele realizava dois ritos separadamente. Sua casa de candomblé em Itaguaí se chamava “Ylê de Oxum Opará”, de tradição ketu. Diminuindo a distância para frequentadores e filhos-de-fé que tinham dificuldades de irem até Itaguaí, ele inaugurou outra casa, em Duque de Caxias, no bairro de Pilar: o Centro Espiritualista Filho de Jesus.
A imagem do preto velho também mudou. Há muitos anos ele era visto como o negro submisso e afeito à imagem da abolição de uma escravatura feita sob a égide da Princesa Isabel. Há alguns anos essa representação vem sendo reconstruída na medida em que o próprio processo histórico tem sido questionado pelos historiadores, cientistas sociais e pelos afros religiosos, na medida em que expandem suas práticas e a reflexividade sobre as suas próprias religiões.
As imagens do preto-velho nos textos do folclore e das literaturas brasileiras, evidenciava a ideia de que Pai João não é um modelo único de comportamento; porém sofreu um processo de emblematização: sendo associado aos valores da sociedade escravocrata em que signos de obediência, humildade, resignação e tolerância o tornam adaptável a um sistema que o oprime. A figura do preto-velho também esteve associada ao estereótipo do negro quilombola, fugitivo, endemoniado, bárbaro e sanguinário. Isto é, o negro velho que assusta.
Preto velho é mandigueiro sim, mas acrescido de um valor histórico juntamente com as mudanças relacionadas aos estudos dos negros escravizados. O dia 13 de maio não é apenas comemoração, mas dia de reflexão, de construção de saberes espirituais que servem para pensar o que se passou nesse país e lembrar que os negros têm agência sobre suas próprias histórias. Neste sentido, as memórias negras e o pós-abolição evocados pelo dia 13 e maio são centrais na umbanda em sua presença pública e na história do Brasil. Lembramos da importância do evento “Você sabe o que é macumba?”, organizado pela Tatá Tancredo da Omoloco organizado em 1965 no dia 13 de maio no Maracanã. O evento foi realizado no estádio do Maracanã em 1965, ou seja, no início do golpe civil-militar de 1964 pela Confederação Espírita Umbandista do Brasil, cujo presidente era o próprio Tatá. Ele era defensor de um modelo de umbanda africanizado, ou seja, a umbanda omolocô. O acontecimento foi noticiado por vários jornais da época, dentre os quais estão o jornal do Brasil, Última Hora e o Diário de Notícia.
Da mesma forma pudemos observar que a ação dos pretos-velhos não se resume à cura de doenças, mas que, principalmente, a imagem que se tem desta entidade remonta o contexto escravagista em que, por uma questão de sobrevivência, os escravos que ficavam na Casa Grande convivendo com os brancos precisavam ser mais dóceis, aderir ao cristianismo, passar seus conhecimentos aos “pretos novos” que chegavam na senzala e, assim, esse passou a ser o ideal que foi por muito tempo perpetuado pelo campo umbandista no Brasil.
Analisando as imagens da internet temos a imagem do preto velho como curador da alma, do psicólogo do povo, misto de doçura e acolhimento. Nas imagens e sites de inteligência artificial, as pessoas comentam e respondem ao preto velho digital com as reações de quem acaba de entrar pela primeira vez num terreiro. Os sentimentos de amor e afeto pela ancestralidade são fartamente demonstrados. São belos e verdadeiros. Porém na experiência religiosa no campo afro religioso, os caboclos, pombas giras e outras entidades também têm poder de cura.
A complexidade dos mundos das entidades nos mostra que seus poderes e agencias estão para além do que possamos imaginar e no campo do sagrado as entidades não se encaixam em ideias fixas.
Referências:
BAHIA, Joana; ESTEVES, Paula; NOGUEIRA, Farlen de Jesus. Preto-velho, curandeiro de umbanda: imagens, estereótipos e emoções na produção do sagrado. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 17, n. 50, p. 1–14, 27 Set 2024 Disponível em: https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rbhr/article/view/23767. Acesso em: 12 mai 2025.
SOUZA, Mônica Dias. Pretos-velhos: Oráculos, crença e magia entre os cariocas. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

Joana Bahia
Professora titular da UERJ. Coordenadora do Nuer (Núcleo de estudos da religião). Autora do livro O Rio de Iemanjá: um olhar sobre a cidade e a devoção, publicado pela editora telha em 2023 e vários artigos sobre religiões afro brasileiras, em especial Omoloco, umbanda, candomblés, Iemanjá e expansão das religiões afro brasileiras no mundo... [+ informações de Joana Bahia]
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