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Religiões em Encontro: Sincretismo ou Confluência e Resistência?

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • 25 de mai.
  • 5 min de leitura

Por Ana Paula Miranda

Foto: Alexsandra Moreira | @iyalerifotografia
Foto: Alexsandra Moreira | @iyalerifotografia

25/05/2025 | 15:58


É consenso entre os pesquisadores de que todas as religiões são marcadas por encontros e trocas. São fenômenos culturais complexos, resultado de sínteses de processos rituais de várias procedências. Mas essa ideia nem sempre encontra eco entre os praticantes que, muitas vezes, defendem a “pureza” e a “verdade” de sua fé. Essa tensão é reveladora, simultaneamente, de uma ideologia e de um mito, que gera um sistema de crenças e de práticas que busca legitimar o poder e a desigualdade.



Sincretismo como Estratégia?

No campo das religiões de matriz afro-brasileira, o sincretismo sempre aparece no debate popular ou acadêmico. Ele geralmente é associado à opressão, manifestando-se de várias formas, como pela imposição da religião dos colonizadores sobre os grupos colonizados. Para alguns estudiosos, o sincretismo afro-católico foi uma estratégia de sobrevivência trazida pelos povos escravizados de África trazidos para a América, praticada desde o século XVI.


Mais recentemente alguns pesquisadores e religiosos propõem outras abordagens para as trocas religiosas. E se, ao invés de pensar apenas na influência do cristianismo sobre as religiões afro, buscássemos entender como as tradições afro exerceram influência nas práticas cristãs brasileiras?


Exemplos não faltam: no caso da Igreja Católica, podemos lembrar da celebração a São Jorge, no Rio de Janeiro, e como a feijoada de Ogum se incorporou à festividade. Em relação às igrejas evangélicas podemos pensar nos rituais de descarrego ou ainda o uso de elementos mágicos vindo de outros cultos (o sal grosso, a rosa ungida, o ramo de arruda etc.). Todos são rituais de tradições afro reinterpretados em novos contextos religiosos.


Transculturação: Um Olhar Mais Complexo

Kabengele Munanga prefere usar o conceito de transculturação para analisar a cultura afro-brasileira. A ideia, originalmente proposta por Fernando Ortiz, se refere a um processo de intercâmbio cultural, no qual há uma troca e adaptação recíproca entre culturas, resultando em novas configurações culturais. Esse processo envolve três momentos: a aquisição de uma cultura distinta (aculturação), a perda de uma cultura precedente (desculturação), ou a criação de novos fenômenos culturais (neoculturação). Ao fazer essa análise, Munanga põe em xeque a ideia de “pureza” das culturas nagô e bantu, levando em consideração as práticas e estratégias que constituíram a cultura negra no Brasil. Concluindo que a cultura negra no Brasil não é pura nem estática, mas resultado de inúmeras trocas e adaptações.


É nesse contexto que precisamos pensar sobre o apagamento do Islã Negro no universo afrorreligioso nacional. O documentário “Allah, Oxalá: na trilha malê”, de Francirosy Campos Barbosa, de 2015, aponta os cruzamentos do universo Afro-Islâmico e salienta que a perseguição aos malês foi tão grande que houve um apagamento dos registros da presença islâmica negra na construção simbólica das tradições afro-brasileiras. Isso não é apenas uma omissão: o apagamento do Islã negro nas narrativas sobre as religiões afro-brasileiras reflete um projeto de enquadramento da diversidade africana em categorias fixas, que servem a determinados interesses políticos e identitários.


O historiador David Robinson analisou como o islã penetrou o continente africano e assumiu as especificidades dos povos que as adotaram. Arthur Ramos e Roger Bastide afirmavam que o islamismo malê sempre esteve ligado as práticas religiosas tradicionais africanas, num processo sincrético, desde a própria África, em termos de costumes, práticas, vocabulário e vestimentas. João do Rio encontrou uma presença de práticas originárias do islã africano, no Rio de Janeiro, mas explicava que os praticantes do candomblé carioca e os muçulmanos, apesar de terem práticas similares, não conviviam e não se relacionavam.


O orientalismo na espiritualidade e o risco do embranquecimento

É comum se falar que na Umbanda há entidades que são conhecidas como a subdivisão da linha do oriente, composta por seres que encarnaram como hindus, árabes, marroquinos, egípcios, entre outros. Mais do que revelador de uma pluralidade e amplitude do universo espiritual afro-brasileiro, esse imaginário sobre a população do Oriente Médio, do Norte da África e de partes da Ásia pode reproduzir uma visão estereotipada, exótica e inferiorizante desses grupos culturais.


O documentário Saravá, Shalom (2025), de Alex Minkin, busca apresentar influências judaicas na Umbanda, na Doutrina Espírita e no Candomblé. Chama atenção do espectador quando uma das pessoas entrevistadas apresenta a genealogia de seus antepassados, que foi reconstruída com o fim de identificar sua ascendência judaica, o que seria necessário para fins ritualísticos de culto à ancestralidade no Candomblé.


Esse fato é um ponto importante porque permite contrastar com a quase total impossibilidade de pessoas negras, descendentes de escravizados, de conseguir reconstruir sua ascendência, já que na diáspora africana, os registros de compra e venda de escravos foram totalmente destruídos, por ordem do Ministro da Fazenda Ruy Barbosa, na recém-proclamada Primeira República Brasileira. Outras formas de apagamentos são constantes, inclusive em produções acadêmicas e/ou artísticas que retratam a religiosidade afro, sem trazer nenhuma participação negra.


Evidentemente, sabemos que todas as tradições são inventadas, mas a forma pela qual a possível influência judaica nos ritos de matriz afro-brasileira é tratada no referido documentário pode ser interpretada como um possível apagamento de saberes, da resistência política e da religiosidade negra, fruto dessa diáspora. Pode-se até se perguntar se estamos diante de um novo modo de embranquecimento, tal como descrito por Reginaldo Prandi ao analisar a formação da Umbanda. Naquele processo, ao buscar-se a “universalidade” produziu-se a exclusão das contribuições negras.


A formação das religiões afro-brasileiras foi marcada por uma espécie de filtragem simbólica, nos quais apenas alguns elementos das várias tradições africanas foram incorporados e legitimados, ao passo que outros foram ignorados ou rejeitados por não dialogarem com o imaginário dominante. O esforço de apresentar os elementos judaicos como constitutivos dessas religiões não está fora desse universo simbólico. É nesse contexto que se pode entender a presença do Rei Salomão como um elemento de culto, tal como também ocorre com as Princesas turcas, cultuadas no estado do Pará, consideradas “encantadas” e reverenciadas como espíritos da natureza, frequentemente associadas a poderes de cura e proteção.


Confluência ou Transfluência?

O intenso trânsito cultural e religioso que se viu no Brasil, a partir da diáspora africana, resultou num diálogo entre deuses, rituais, processos iniciáticos, modos de fazer e estar na experiência religiosa, produzindo um convívio religioso diplomático.


Podemos pensar aqui no conceito de confluência de que fala Nego Bispo, como um encontro cosmológico entre diferentes formas de vida e saberes, que ao se juntar ganham força, mas preservam suas singularidades. Esse processo se opõe à transfluência, associado a processos de transformação impostos, nos quais há apagamento e assimilação forçada, resultando na perda de identidade. Confluência é diálogo; transfluência, dominação.


Tradições, Redes e Hiperindividualização

Quando se trata de tradições não faz nenhum sentido falar em pureza, pois as composições são múltiplas. Lembrando o historiador Eric Hobsbawm, em contexto diaspórico sempre podemos identificar a invenção da tradição para dar conta de administrar as diferentes culturas religiosas. Por isso é possível encontrar elementos de variadas procedências em cultos que se autodenominam como de matriz afro. O risco que se corre quando uma nova comunidade imaginada irrompe nesse cenário é verificar se ela revela uma operação de racismo epistêmico, ou seja, se há algum processo de desvalorização de saberes, das formas de resistência e da espiritualidade negras constitutivas dessa matriz, evidenciando-se uma lógica colonial de conhecimento, travestida de decolonialidade.


Se as religiões estão sempre ligadas a campos de forças que resultam em situações de interpenetrações e comunicações, mas também de competição e enfrentamento, é, no mínimo, curiosa a descoberta de uma influência judaica no candomblé cearense. A existência de um Rei Salomão no universo da encantaria pode ser lida como parte de uma matriz religiosa brasileira, sempre aberta a incluir mais um no seu rol de espíritos. Mas considerá-lo como parte de uma cosmogonia de origem africana é um desafio à mentalidade mítico-tradicional.


Talvez se trate, antes, de mais um exemplo de hiperindividualização, fenômeno característico das religiosidades contemporâneas, em que práticas específicas são reinterpretadas como novas tradições, contribuindo para um movimento crescente de hibridização das crenças e das experiências religiosas, que tem impacto direto nos modos ritualmente legitimados de aprendizado das tradições de matriz africana.




Joana Bahia - AxéNews

Ana Paula Mendes de Miranda

Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.





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