Por que somente as pessoas brancas falam sobre o povo preto?
- WR Express

- 20 de nov.
- 6 min de leitura
Por: Lelo Oliver

✅ 20/11/2025 | 20:56
Novembro, mês da Consciência Negra, costuma trazer à superfície debates sobre racismo, ancestralidade e resistência. Mas, entre campanhas, eventos e discursos, uma pergunta persiste: quem está falando sobre o povo preto? A questão ganha relevância quando olhamos para as prateleiras de livrarias, para acervos de bibliotecas e para pesquisas acadêmicas que tratam de orixás, candomblé, umbanda, Ifá e outras tradições das religiões de matriz africana. A maioria dos nomes que aparecem nesses espaços não representa a vivência negra, mas sim um olhar externo, majoritariamente branco.
Essa constatação não parte de rejeição, e sim de inquietude. Interessa, sim, que pessoas brancas estudem e escrevam sobre as religiões afro-brasileiras. O problema está no desequilíbrio histórico: quem vive a espiritualidade negra na pele continua tendo menos espaço para falar sobre ela do que aqueles que chegaram a essas tradições pela via acadêmica. As vozes negras, herdeiras diretas da memória ancestral que resistiu ao apagamento cultural, ainda são minoria em lugares decisórios do conhecimento.
Uma consulta simples aos catálogos de livros sobre religiões de matriz africana mostra a repetição de nomes. Reginaldo Prandi, Luiz Antônio Simas, Luiz Rufino, Márcio de Jagun, José Beniste, Vagner Gonçalves da Silva, Agenor Miranda Rocha, Adilson de Oxalá, José Flávio Pessoa de Barros, João do Rio e Fernandez Portugal Filho compõem boa parte das referências mais citadas. Muitos deles são pesquisadores brancos ou não negros. Suas contribuições são importantes, mas revelam o vazio deixado pela ausência de intelectuais negros em igual proporção.
Quando o foco recai sobre autores e pesquisadores negros, a lista é muito menor. Entre os poucos nomes que conseguiram romper as barreiras impostas pela academia e pelo mercado editorial estão Abdias do Nascimento, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Yemanjá, Cuti, Altair Bento de Oliveira, Ivanir dos Santos e Ney Lopes. Essa discrepância expõe a forma como o racismo estrutural molda quem tem permissão para ser ouvido.
Nesse contexto, dois acontecimentos recentes ganharam força simbólica. A eleição da escritora Ana Maria Gonçalves para a Academia Brasileira de Letras, em 2025, marcou a entrada da primeira mulher negra na instituição centenária. Autora de Um Defeito de Cor, sua obra atravessa a memória afro-atlântica e ecoa vozes silenciadas pela história oficial. Já em Mato Grosso, a poetisa e dramaturga Luciene Carvalho se tornou a primeira mulher negra a presidir uma academia de letras no país, comandando a Academia Mato-Grossense de Letras com foco em inclusão e renovação.
Essas conquistas são históricas, mas não necessariamente preenchem a lacuna que atravessa o debate sobre as tradições afro-brasileiras. Ana Maria Gonçalves e Luciene Carvalho se destacam pela literatura, pela poesia, pelo teatro, mas não ocupam o campo da pesquisa ou da escrita especializada sobre religiosidade afro-brasileira. A representatividade institucional avança, mas o espaço destinado à interpretação, documentação e transmissão dos saberes religiosos pretos continua dominado por olhares externos.
A diferença entre conhecimento vivido e conhecimento estudado ajuda a explicar esse descompasso. As religiões de matriz africana são construídas na prática diária, no corpo, na oralidade, no axé que passa de uma geração a outra. Esse território nem sempre encontra tradução na linguagem acadêmica, que costuma privilegiar análises teóricas e enquadramentos que não dialogam com a experiência de quem vive o que escreve.
Ainda assim, é esse olhar externo que, historicamente, tem sido legitimado como referência. O sistema editorial reforça essa lógica ao priorizar autores já consagrados, quase sempre brancos, enquanto escritores negros encontram mais acolhimento em selos independentes, com menos alcance e pouca divulgação. O resultado é uma distorção: livros escritos por quem observa de fora circulam amplamente, enquanto narrativas produzidas por aqueles que pertencem às tradições lutam para existir nas prateleiras.
Celebrar essas vitórias, no entanto, também significa reconhecer o atraso histórico que elas denunciam. Em mais de cem anos, duas mulheres negras ocupando lugares centrais na produção literária institucionalizada, revelam mais sobre o país do que sobre essas escritoras. A reparação necessária ainda está longe de ser alcançada.
O conhecimento que nasce da vivência é diferente daquele que nasce apenas do estudo. Muitos pesquisadores brancos chegam às religiões afro-brasileiras por interesses acadêmicos, bibliográficos ou antropológicos. Pessoas negras, por outro lado, carregam essas tradições desde a infância, aprendem seus fundamentos na oralidade do terreiro, sentem seus ensinamentos na pele e no cotidiano. Esse saber ancestral deveria ocupar naturalmente o centro das discussões. Mas o acesso ao ensino superior, à pesquisa e ao mercado editorial nunca foi igual para todos.
A pergunta que se impõe é simples: por que o Brasil insiste em ouvir mais quem estuda o povo preto do que quem é o povo preto? A resposta passa por estruturas profundas, que vão desde a forma como o conhecimento é produzido e legitimado até as políticas editoriais que definem quem será visto, lido e citado.
A escrita preta é mais do que produção intelectual. É um gesto político, espiritual e reparador. Quando uma mulher negra escreve sobre Oyá ou Oxum, ela fala a partir de vivências que nenhum arquivo pode reproduzir. Quando um homem negro escreve sobre Exu, ele retoma sentidos que foram distorcidos por séculos de racismo religioso. Esses olhares têm potência própria e não podem continuar restritos às margens do mercado de livros.
Ampliar essas vozes exige ações concretas: políticas de fomento, curadorias mais atentas, formação especializada, investimento nas editoras que publicam autores negros e abertura real de espaços em universidades e livrarias. É preciso tirar o peso simbólico das vitórias isoladas e transformá-las em políticas contínuas.
Em tempos de intolerância e retrocessos, dar visibilidade à produção de escritoras e pesquisadores negros sobre as religiões afro-brasileiras é um gesto urgente. A entrada de mulheres negras nas academias de letras é um avanço, mas não resolve a questão central: por que, em pleno século XXI, o Brasil ainda permite que pessoas brancas ocupem o lugar de fala sobre tradições que pertencem ao povo preto?
A disparidade aparece também na indústria do livro. Editoras grandes tendem a apostar em autores já conhecidos, em sua maioria brancos. A literatura negra, apesar de fundamental para compreender o Brasil, circula com menos recursos, tiragens menores e pouca divulgação. Assim, repete-se um ciclo no qual livros escritos por pesquisadores brancos sobre orixás e religiões afro-brasileiras chegam às listas de mais vendidos, às escolas e às universidades, enquanto obras de autoria negra lutam para se tornar visíveis.
O debate, portanto, não é sobre impedir que pessoas brancas escrevam sobre o tema. É sobre garantir equilíbrio e visibilidade. Quando, entre dez livros publicados sobre orixás, oito são escritos por pessoas brancas, há um desequilíbrio que precisa ser enfrentado.
A história da academia brasileira mostra que, durante muito tempo, universidades foram espaços quase exclusivamente brancos. A religiosidade africana era discutida como folclore, não como sabedoria filosófica, espiritual e histórica. Embora o acesso ao ensino superior tenha se ampliado, ainda são poucas as pessoas negras que ocupam posições de autoridade na produção acadêmica sobre suas próprias tradições.
A escrita preta, nesse contexto, é um ato político, espiritual e histórico. Quando uma mulher negra escreve sobre Oyá, ela registra a força que herdou. Quando um homem negro escreve sobre Exu, ele afirma liberdade, movimento e resistência. Esses olhares não podem ser substituídos. Trazem o axé de quem vive, não apenas de quem observa.
Fortalecer e ampliar essas vozes é urgente. É preciso abrir espaço nas editoras, ampliar a presença de pesquisadores negros nas universidades, garantir que suas obras cheguem às livrarias e às escolas. A literatura afro-brasileira não deve ser tratada como exceção, mas como parte essencial da formação cultural do país.
Em tempos de intolerância e retrocessos, escrever sobre orixás e sobre o povo preto é um gesto de coragem. Publicar essas vozes, garantir que circulem e que sejam reconhecidas, é um ato de justiça histórica.
A pergunta que inicia esta matéria permanece no ar: por que pessoas brancas falam sobre o povo preto? E, sobretudo, quando permitiremos que o povo preto fale por si?
A Onirá Editora, por meio dos selos Novos Griôts, Casa dos Diálogos e Vozes ao Vento, trabalha para fazer com que essas vozes cheguem às prateleiras das grandes livrarias. A missão é promover um novo ciclo de escuta, valorização e pertencimento.
Ao final desta reportagem, há um espaço aberto para comentários. O que pode ser feito para ampliar a presença de escritores e pesquisadores pretos na literatura e na produção de conhecimento? Sua opinião é fundamental para construir esse diálogo.

Lelo Oliver
Produtor Editorial, Design Gráfico, Capista e Diagramador. CEO da Onirá Editora e do selo Novos Griôts. Com Vários Livros e Revistas produzidos e Lançados dentro e fora do Brasil. Revista Escrita Sete (Portugal, Frankfurt e em breve Estados Unidos). Foi indicado com dois livros no Aclamado Prêmio Jabuti. Foi indicado com um livro na academia Brasileira de Letras. [+ informações de Lelo Oliver]
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