Entre consumo e ancestralidade: por que o axé só floresce no território comunitário
- WR Express

- 15 de set.
- 4 min de leitura
Por: Pai Sid

✅ 15/09/2025 | 20:05
Tenho observado, com preocupação, a proliferação de anúncios de trabalhos, rituais e cursos oferecidos nas redes sociais como se o sagrado fosse um produto de prateleira. Vende-se “amarração” por mensagem, promessa de fortuna por transferência bancária, limpeza espiritual com prazo de entrega e até mesmo fórmulas de espiritualidade faça-você-mesmo, desvinculadas da experiência em um terreiro. Essa lógica do consumo esvazia aquilo que é fundamento para nós: o compromisso com a comunidade, a disciplina do terreiro, a vivência no coletivo.
Entre os povos bantu, a vida só faz sentido porque é sustentada pela força vital (ntú, ngunzo). Essa força não é uma abstração: é a energia essencial que circula em tudo o que existe, visível e invisível. O indivíduo é muntu — corpo, mente, cultura, palavra — e só se realiza plenamente em relação com a comunidade. A força vital é relação, reciprocidade e totalidade. É também manutenção da ordem cósmica: tudo que vive precisa retornar à fonte que o gerou. Por isso, não se acumula como bem privado, mas se renova quando circula. O que fortalece um deve fortalecer a todos, e a comunidade devolve em cuidado aquilo que recebe do indivíduo. O que é ofertado a preço tarifado, sem convívio e sem partilha, tende a não durar; não é força, porque não toma o caminho de retorno para a fonte que o gerou.
Entre povos africanos, curandeiros, adivinhos e sacerdotes dominavam a ciência de equilibrar a força vital e de recolocar em harmonia aquilo que se desequilibrava. Não eram comerciantes de fórmulas rápidas, mas guardiões de um saber complexo, acumulado na experiência e transmitido pela tradição. A eficácia de sua ação não residia no gesto isolado, mas no vínculo com a totalidade da vida e com a comunidade. Não é possível sistematizar o ntú em pequenos cursos disso e daquilo.
Esse contraste precisa ser lembrado. Hoje, muitas ofertas nas redes sociais se apresentam como “serviços espirituais” prontos, mas não carregam o fundamento ancestral. São práticas pulverizadas, desconectadas da vivência comunitária, que podem enganar incautos com promessas passageiras. O risco é grande, porque quem procura apenas resultados imediatos perde a oportunidade de se inserir num caminho de transformação real, perde o contato com o axé vivo que só existe na coletividade.
Os terreiros, nesse sentido, são muito mais do que templos religiosos. São territórios reconstruídos diante da terra roubada, espaços criados para garantir a sobrevivência de um povo e de sua memória. O próprio termo “terreiro” fala dessa necessidade de reocupar o chão, de refundar uma territorialidade onde a comunidade pudesse se manter viva. Ali se guardam não apenas ritos, mas também saberes, tecnologias e filosofias que permitem que nossa existência continue.
Reduzir o terreiro à sua dimensão ritual é negar sua complexidade. No terreiro se aprende a cozinhar, a cantar, a manipular folhas, a educar, a curar, a organizar coletivamente a vida. Cada prática é parte de um sistema ancestral que articula espiritualidade, ecologia, ciência e política comunitária. O terreiro é espaço de diferença, onde se afirma outra forma de ser e de se relacionar com o mundo, contrapondo-se à lógica de homogeneização colonial.
Separar os saberes e práticas do território do terreiro é um gesto de violência. Pulverizar ritos em ofertas desconectadas da comunidade é contribuir para a morte lenta do que nossos ancestrais levaram séculos para construir. Desligar as práticas de sua base territorial é retirar delas sua potência e nos condenar ao enfraquecimento. O terreiro é território de vida: apartá-lo do que nele nasce é colaborar com a lógica que nos mata.
Essa reflexão nos atinge em cheio enquanto povos de terreiro. Quando alguém busca atalhos fora da comunidade, sem compromisso com o viver e o fazer coletivo, enfraquece a si mesmo e ameaça a vitalidade do grupo. A ausência de comunidade abre espaço para o consumismo religioso, para a mercantilização da fé, para práticas que seduzem, mas não transformam. Por outro lado aqueles que oferecem facilidades desconectadas com a comunidade e a filosofia ancestral estão matando memórias e saberes, estão roubando comunidades.
As filosofias bantu nos ensinam que ntú é totalidade e que o axé se vive em roda, em partilha, em disciplina coletiva. O que está em jogo, portanto, não é apenas a autenticidade de um ritual, mas a própria sobrevivência das comunidades tradicionais. Se deixarmos que saberes fragmentados e práticas mercantilizadas tomem o lugar da experiência coletiva, corremos o risco de enfraquecer nossa própria base: a comunidade que dá sentido à existência do indivíduo, e o indivíduo que sustenta a vida da comunidade. Sem essa base, o axé se dilui em consumo e deixa de ser caminho de vida.

Pai Sid
Pai Sid Soares é pai pequeno do CENSG - Centro Espírita Nossa Senhora da Guia em Volta Redonda RJ. Co-presidente da Comissão de Terreiros Mojuba, no Sul Fluminense que realiza um trabalho de fomento das políticas públicas para o povo de santo. [+ informações de Pai Sid]
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