Agosto: Tempo de Cura, Memória e Fortalecimento Coletivo
- WR Express
- 10 de ago.
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Por: Olomidê Lessa

✅ 10/08/2025 | 13:40
No calendário dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (POTMA), o mês de agosto não é apenas mais um entre os doze do ano. Ele carrega consigo um peso simbólico e espiritual que transcende os limites do tempo cronológico. Agosto é tempo de cura. É quando os ventos anunciam a necessidade de renovação, de escuta dos mais velhos, de reverência às forças da natureza e de reequilíbrio entre corpo, território e ancestralidade.
É também nesse período que se realiza, em muitas comunidades de terreiro, a cerimônia do Olubajé, banquete sagrado em honra a Obaluayê/Omolu, orixá da cura, da terra e das doenças. O Olubajé é uma celebração coletiva profundamente ritualística, onde a comida não é apenas oferecida: cada prato, cada folha, cada gesto é expressão de fé, gratidão e ligação com o sagrado. Essa vivência reafirma que os saberes dos POTMA são práticas de saúde integral — e não folclore, nem superstição. A comida, nesse contexto, não nutre apenas o corpo, mas também a alma e a coletividade. Ela cura, conecta e acolhe.
No entanto, é preciso lembrar que essas práticas seguem sendo alvo de preconceito,
apagamento e racismo. O conhecimento ancestral dos POTMA é sistematicamente
desvalorizado por estruturas coloniais que insistem em separá-lo da noção ocidental de ciência. É urgente enfrentar essa marginalização, reconhecendo que a sabedoria das Unidades Tradicionais Territoriais (UTTs), quilombos e comunidades tradicionais e de terreiros é também produção de conhecimento, de saúde e de bem-viver. Como afirma a pensadora Lélia Gonzalez, “a cultura negra é uma cultura de resistência e reexistência que precisa ser compreendida em seus próprios termos” — e isso inclui suas práticas de cura, espiritualidade e alimentação.
Agosto é também tempo de cuidado afetivo, de relembrar que o alimento é uma das formas mais profundas de demonstrar amor e zelar pela saúde da comunidade. Preparar, servir e partilhar alimentos sagrados é construir uma rede de cuidado que atravessa o tempo. Esses gestos afetuosos são parte de uma medicina do cotidiano, transmitida por mães, avós e tias, que curam com o toque, o canto, o tempero e a palavra.
É o mês da medicina tradicional africana, celebrada oficialmente em 31 de agosto, e
reivindicada como símbolo de luta pelo reconhecimento das práticas de saúde dos POTMA como legítimas e eficazes. Essa medicina é praticada por curandeiras, benzedeiras, rezadeiras, babalorixás e iyalorixás, que operam curas que escapam ao olhar biomédico, mas que sustentam a vida com base no afeto, no axé e na ancestralidade. Como afirma Grada Kilomba, “o que é considerado conhecimento legítimo está diretamente ligado a quem tem o poder de nomear o mundo”. Valorizar a alimentação e a cura ancestral dos POTMA é, portanto, um ato político e de reequilíbrio epistêmico.
Simultaneamente, agosto abriga o Dia Internacional dos Povos Indígenas, celebrado em 9 de agosto, e que ressoa com potência no universo dos POTMA. Ambos os povos, embora distintos em suas cosmovisões, compartilham lutas históricas pelo reconhecimento de seus saberes, pela proteção dos territórios, pelo respeito à biodiversidade e pela soberania alimentar. E mais do que isso: compartilham pactos históricos de convivência e resistência forjados desde o período colonial. Esses encontros, muitas vezes forçados pelas circunstâncias da diáspora e da opressão, permitiram alianças fundamentais que foram estratégicas para a preservação física, espiritual e cultural de ambos. Sem essas confluências, muitos dos saberes e das vidas desses povos teriam sido completamente dizimados.
Assim, agosto se configura como um tempo político, espiritual e cultural de fortalecimento coletivo e de rememoração dos pactos que sustentam a continuidade da vida. É o mês em que reafirmamos que nossos corpos são território, que nossas práticas são ciência, e que nossos saberes merecem ser reconhecidos e protegidos. É tempo de lembrar que a saúde, para nós, não se compra em farmácia: ela se planta, se colhe, se canta, se cozinha e se compartilha — com afeto e conhecimento ancestral.

Olomidê Lessa
Omobirin de Iemanjá e Oxum, pertencente ao povo Iorubá, nação Ketu e Juremeira. Especialista em Ensino de História da África e Educação Étnico Racial. Educadora Popular com licenciatura em Letras. Coordenadora Nacional de Comunicação do Fórum Nacional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSAN-POTMA). [+ informações de Olomidê Lessa]
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