Por: Ademir Barbosa Junior
03/05/2024 | 15:49
(Adaptado de livro homônimo ainda inédito, escrito em setembro/outubro de 2023)
Para minhas filhas Vanessa e Denise, devotas da Santa Muerte.
De origem mexicana, o culto à Santa Muerte é cercado de maledicências. Assim como acontece com as chamadas religiões de terreiro, à Santa Muerte são atribuídas amarrações amorosas, malefícios diversos e associação ao narcotráfico. No Brasil, conhecemos bem como se dá esse tipo de apropriação/associação preconceituosa, respaldada por religiosos (as) que, infelizmente agem de má-fé, regiamente pagos (as) por cúmplices que clamam pela Espiritualidade como crianças mimadas. Quanto à relação entre Espiritualidade e crime, quantas violências ao longo da História em nome de Deus, Jesus etc.? O que dizer da suástica budista da qual Hitler se apropriou e alterou formato e sentido sagrado? Se hoje temos traficantes neopentecostais, seus antecessores muitas vezes eram devotos do Orixá Ogum, São Jorge ou Zé Pelintra1. Portanto, tentativas canhestras de dominação em nome da Espiritualidade dizem mais sobre o humano do que das representações do Espiritual e do Divino. Nesse sentido, nosso trabalho apresenta um mosaico do culto e da devoção à Santa Muerte e sua energia de paz, bem-estar, cura, resiliência, fruição e respeito ao livre-arbítrio.
Santa Muerte (por hábito e reverência à origem mexicana, uso o termo em espanhol, por isso o “Santísima” de Santísima Muerte tem apenas um “s”), também conhecida como “Niña Blanca”, “Flaquita” e outros tantos nomes carinhosos é uma Santa da periferia do mundo, acessível a todos (as) que desejem com ela conversar, dirigir-lhe uma prece ou um pedido ou se tornar seu (sua) devoto (a). Mas por que Santa Muerte parece atrair as periferias do mundo, as pessoas que contestam o sistema, os (as) transgressores (as), aqueles (as) que se colocam contra os desmandos do mundo (como visto acima, até mesmo de maneira equivocada, aqueles/as que substituem um desmando - legal - por outro - ilegal)? Porque Santa Muerte é uma santa da vida, não de um aqui-agora imediatista, mas da vida como sentido pleno, vivida com qualidade (tanto ou mais do que em quantidade) e que não se esgota quando o espírito deixa o corpo. Santa Muerte nos apresenta, portanto, a morte tanto como transitoriedade quanto como caminho de perenidade. Ela nos lembra de que, se há vida pós-morte, também existe vida antes da morte. Por isso (e, naturalmente, não apenas) suas festas são alegres e concorridas, assim como o Día de los Muertos mexicano, de modo geral, em 02 de novembro de cada ano.
O culto e a devoção à Santa Muerte estão à disposição de todos (as) e representam não um balcão de negócios, mas antes proteção e apadrinhamento, não do tipo que apunhala pelas costas. Alguns ainda lhe estranham as representações, como a negar a finitude da vida terrena e o próprio corpo físico com sua estrutura óssea. Outros temem as muitas ameaças assustadoras que cercam seu culto e sua devoção, as quais não condizem com a beleza, a leveza, o bem-estar e o equilíbrio que a “Niña Blanca” esparge sobre todos (as), sem distinção. Quanto aos que estranham caveiras, ossos, morte e afins, vale a divertida reflexão proporcionada por este meme brasileiro:
A caveira representa estrutura e ancestralidade, enquanto a morte evoca transmutação, recomeço, ciclicidade. Esses são alguns dos aspectos evocados pelo culto e pela devoção à Santa Muerte. Nosso trabalho, ao mesmo tempo que apresenta formas práticas, acessíveis e universais de aproximar a Santa Muerte de quem desejar vivenciar essa energia de amor, autocuidado e autoconhecimento, também promove reflexões sobre a relação dialética entre vida e morte. Afinal, sobretudo no Ocidente consumista, busca-se mascarar a morte de formas diversas, sobretudo pela publicidade que eterniza (e vende para) a juventude, enquanto busca incessantemente a morte como auto-anulação, de forma consciente ou inconsciente, por meio do consumo de substâncias deletérias (algumas delas, em contextos pseudo-espirituais) e de esportes de riscos (e ricos).
Como muitos dos (as) leitores (as) são cristãos, de denominações diversas, ou seguidores (as) de Jesus de Nazaré 2, e porque o culto e a devoção à Santa Muerte, em seus sincretismos e amálgamas, trazem elementos do Cristianismo e do Catolicismo tanto doutrinário quanto popular, lembro aqui algumas reflexões atribuídas a Jesus sobre a vida e a morte acrescidas de alguns comentários:
“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto” (Jo 12,20-33) - As transformações são constantes e necessárias tanto para o bem-estar individual quanto coletivo. Transformações pedem desapego daquilo que serviu, mas se tornou desnecessário em situações que se apresentam. A vida é dinâmica (e isso inclui as mortes e todas as passagens e transformações). Apenas cadáveres são estáticos.
“Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou, o que o homem poderia dar em troca de sua alma?” (Mc 8, 36-37) - A vida é essencial, tudo à sua volta é acidental. Há um provérbio Zen segundo o qual, quando o Mestre aponta o caminho com o dedo, o aprendiz sábio olha o caminho, o tolo encara o dedo do Mestre.
“Deixe que os mortos enterrem seus mortos.” (Mt 8, 22) - Tal ensinamento não é uma afronta à ancestralidade ou à importância dos ritos fúnebres, mas um lembrete de desapego. Mais uma vez, é preciso saber o que é essencial e o que é acidental para que se possa caminhar com mais leveza. Um sujeito caminhou até o rio. Encontrou um barco, fez a travessia e então carregou o barco nas costas em terra firme em busca de outro rio para poder usá-lo. Você já fez isso?
Por fim, o culto e a devoção à Santa Muerte podem ser individuais ou coletivos; com ou sem altares; em domicílios ou em templos, inclusive com sacramentos. Embora seja difícil abarcar tanta diversidade em poucas páginas, ressaltamos o caráter de transgressão, resiliência, ancestralidade e sincretismo relacionados à Santa Muerte. É uma celebração à vida plena, com a reabilitação da morte como parte da existência1, não uma forma de atrair quiumbas e eguns. 4 A irmã morte cantada por Francisco de Assis (o qual, precisa ser entendido como homem de seu tempo, pois negou muito da vida terrena, a começar pelo corpo físico), a companheira do poeta Manuel Bandeira são acolhidas e ressignificadas pela Santa Muerte, a qual, assim desejo, abençoe mais e mais a sua vida. Assim seja, assim é, assim será.
Para saber mais, siga o perfil no Instagram @santamuertecultoedevocao . Você encontrará um pouco sobre a história, as características, o culto e a devoção da Santa Muerte Bendita, ao mesmo tempo tão amada e tão difamada.
1 COSTA, Viviane. Traficantes evangélicos: quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2023.
2 Evoco aqui os diálogos e as pesquisas da Mestra e Doutoranda Marta Beatriz Conceição Guedes sobre a criônica.
3 BARBOSA JR., Ademir. Vivências anarcrísticas: por uma teologia da transgressão. Rio de Janeiro: Metanoia, 2022.
4 “Egum: Egum provém do iorubá ‘egun’, que quer dizer ‘osso’, ‘esqueleto’. Significa espírito, alma do desencarnado. Ao contrário do uso popular, não representa necessariamente espírito de vibrações deletérias. (Sem a acepção negativa, por exemplo, pode-se dizer que um Preto-Velho é um Egum); “Quiumba: Espírito obsessor, zombeteiro, com baixa vibração energética, que busca provocar confusão, arruaça, vingança etc., necessitando de encaminhamento e/ou doutrinação. Do quicongo kiniumba (espírito).” BARBOSA JR., Ademir. Dicionário de Umbanda. São Paulo: Anúbis, 2015, p. 85 e 189.
Ademir Barbosa Junior
Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]
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