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Quanto tempo o tempo (afrorreligioso) tem?

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    WR Express
  • há 3 dias
  • 3 min de leitura

Por: Renan Piedade

Foto: Reprodução

07/06/2025 | 07:26


Nos dias de hoje, em nossa sociedade ocidentalizada e atravessada pelos fortes

resquícios do passado escravagista, é bastante comum concebermos o tempo como

sinônimo de ganho financeiro, como serviço a ser vendido e comprado (comparável a

qualquer outra mercadoria) e como algo que deve ser aproveitado a qualquer custo. No entanto, nas religiões de matrizes africanas, plurais que são, embora tenhamos assimilado o calendário imposto por essa herança colonial, lidamos com o tempo a partir de nuances próprias das concepções africanas. A esse respeito, o renomado sociólogo Reginaldo Prandi, em seu célebre texto “O Candomblé e o tempo”, já nos dizia: “aquilo que nos acontece hoje e que está prestes a acontecer no futuro já foi experimentado antes por outro ser humano, por um antepassado, pelos próprios Orixás”. As palavras do autor traduzem o pensamento de que nós, afrorreligiosos, não operamos a partir de uma sucessão linear de tempo, enxergando-o, em contrapartida, como uma realidade cíclica, como se as nossas vivências atuais fossem reflexo do que nossos ancestrais e nossos Orixás já experimentaram e, por isso, pretendem seguir nos ensinando.



Dessa forma, como ocorrem com as estações do ano, com as fases da lua, com o

processo de plantio e de colheita, assim compreendemos o tempo nos terreiros, como

aquilo que não se perde, mas se repõe. Um exemplo claro disso é o lugar ocupado pelos antepassados e pelos mais velhos em nossos cultos. Estejam materializados em vida ou não, estão interligados conosco, pois fazemos todos parte de uma tradição

multidimensional que não se presta à explicação reduzida, a separar o velho do novo, o morto do vivo, o passado do presente, o concreto do abstrato. Ligados ao eterno retorno, a geração futura será, portanto, fruto da nossa existência, ao passo que somos consequência das experiências dos que vieram antes de nós, de modo que esse processo não se restringe aos laços biológicos, mas se aplica também a um elo histórico-político cultural-religioso maior entre os ancestrais e os vivos, sendo essa relação um agente determinante nas cosmologias negro-africanas adotadas em nossas tradições religiosas.


Devido a esse elo, estamos todos inseridos no fluxo contínuo das vivências

passadas-presentes-futuras, cíclicas que são, construindo-nos como aprendizes dos

saberes afrorreligiosos (sejamos umbandistas, candomblecistas, juremeiros,

quimbandeiros, etc) e consequentemente como figuras responsáveis por darmos

sequência ao que aprendemos diariamente. Sendo assim, essa leitura cíclica do tempo é justamente o que nos permite perpetuar nossa subsistência enquanto espécie, por sermos capazes – através das danças, das cantigas, dos banhos de ervas, dos fios de conta e das oferendas, por exemplo – de ritualizar a memória de nosso povo, de compreender nossas identidades e de traçar caminhos férteis para que nossos saberes sejam constantemente revisitados. Nesse sentido, melhor do que pensarmos em ‘quanto tempo o tempo tem’, é primordial experienciarmos o tempo, no sentido de produzirmos proximidade com nossos deuses e com as comunidades de terreiro, de gerarmos sabedoria no trato das coisas do axé e de construirmos conhecimentos sobre nossas próprias demandas político-culturais.


Com a benção e com o aval da espiritualidade negra, essa é uma das formas de nos

tornarmos agentes afrorreligiosos, com engajamentos temporais e corporais autênticos, ainda que o relógio ocidental tente (por muitas vezes) insistir em dizer que nos falta tempo para VIVER.



Referência bibliográfica:

PRANDI, R. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n.47, p. 43-58, 2001.




Renan Piedade - AxéNews

Renan Piedade

Renan Silva da Piedade / Professor e Doutor (Letras/PUC-RIO).

Candomblecista iniciado, filho de Ayrá e de Oxum, sob os cuidados da Yalorixá Simone de Jagun, no Ilê Asè Jagùn Orùn Ayê. Carrega uma grande fé em Dona 7 Saias e em Exu Marabô. É Doutor em Estudos da Linguagem e Professor do Departamento de Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Seus campos de interesse compreendem estudos em Questões Raciais, Religiões de Matrizes Africanas, Formação de Professores e Linguística Aplicada Crítica.  [+ informações de Renan Piedade]



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Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews.


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