Processos de socialização na escolarização de homens negros: e eu, não mereço estudar?
- WR Express

- 23 de set.
- 5 min de leitura
Por: Jacqueline de Òbá

✅23/09/2025 | 08:05
“se você é cego, descrever um elefante é fácil.
[...] mas ter olhos, em vez de facilitar tais descrições
Na verdade, as dificulta”.
Chinua Achebe
Falar sobre educação nunca é uma tarefa fácil ou que nos deixe na zona de conforto. Ao contrário, o processo do pensar a educação requer comprometimento por parte de quem se coloca nesse papel de pensa-la; disposição; leitura minuciosa do curso histórico, das relações sociais e étnico raciais no contexto escolar; na dinâmica da sociedade brasileira somado à pesquisa, experiência de sala de aula, observação, e uma análise crítica tomando como assente epistemológico da “interseccionalidade”, de Akotirene (2019) e “Ensinando pensamento crítico – sabedoria prática”, de bell hooks, como aportes indispensáveis na elaboração de uma educação antirracista.
Coloco-me aqui em primeira pessoa, a fim de autorizar que meu Orí (o Orí de uma
mulher negra de Òbá) fale e reverbere as vozes emudecidas dos meus antepassados e
ancestrais pelos grilhões da colonização portuguesa. Desse modo, assumo uma
autoridade política de fala, como bem nos ensinou a intelectual negra Rosane Borges, e caminho em busca de respostas fornecidas nas encruzilhadas de Exú. Por isso, eu
recomeço: e eu, não mereço estudar – esta é a pergunta, que nesse momento, diversas
crianças negras, meninos e meninas devem se questionar em seu interior imagético. E
aí, eu vos pergunto: quem tem direito à educação livre de preconceitos, discriminações e estereotipias em decorrência da cor de sua pele – quem tem
A resposta para essa pergunta é fácil e indica o marcador social (dispositivo racial)
expresso na cor da pele responsável por etiquetar e distribuir em caixas, aqueles e
aquelas, cujo exercício e execução de determinados papeis serão autorizados a partir do sistema político da branquitude. De modo que ser uma pessoa negra no Brasil é ter seu corpo atravessado por uma matriz de opressões que deixam feridas em aberto; cicatrizes e sequelas em um corpo marcado pela temporalidade histórica da escravização, mas que se refaz ininterruptamente como espaço de luta e resistência.
Nesse sentido, a desigualdade continua sendo uma avenida identitária de imprescindível uso quando paramos para refletir nas reproduções que a Escola faz com corpos negros, sem pensar na existência dos mesmos como sujeitos com autonomia e capacidade crítico-analítica de desenvolver qualquer tipo de estudo, como, por exemplo ir muito bem em disciplinas que envolvam o uso da matemática, física e química. O incentivo presunçoso da certeza de uma negativa ao tratar de crianças negras é certo. Ou seja, pergunta-se preconcebendo o fracasso por parte do outro. E é importante dizer que esse olhar está impresso no processo de escravização, a exemplo, hooks (2015).
“Desde a escravidão até os dias atuais, alguns homens negros tem estado na
vanguarda dos esforços que os afro-americanos tem realizado para adquirir
educação em todos os níveis. Em fins do século XIX e começo do século XX,
qualquer homem negro que procurasse passar da escravidão para a liberdade
via a educação como uma saída. Durante esse período, a falta de recursos
materiais frequentemente obrigava as famílias negras a mandar as meninas
para a escola e a empurrar os garotos para procurar trabalho”.
Quantos e quantas de nós não vivenciamos o mesmo em nossa família? quantas de nós não fomos estudar e vimos o nosso irmão, primo, tio, pai serem empurrados em um processo de socialização que “através da mídia de massa e de uma educação elitista tendenciosa para acreditar que tudo o que é necessário para a sua sobrevivência é ter habilidade para o trabalho físico?” (Carvalho apus hooks, 2015). Quantos de nós não fomos atingidos pelas mudanças constantes de imóveis por ausência de empregos que remunerassem com dignidade e respeito seus trabalhadores, e nos vimos diante de uma ordem de despejo com nossos pais ou precisando realizar mudança às pressas? quantos de nós não tivemos prejuízos no campo das aprendizagens em decorrência de mudanças de lares, escolas e porque o espaço em que poderíamos “ser alguém” não nos enxergava com compaixão, empatia, amorosidade e não nos via como sujeitos? Quantas de nós? e ainda diante de tantas adversidades éramos os melhores da classe.
Ao percorrer a Literatura, a indústria cinematográfica, o teatro, os museus e outras
formas de expressão da subjetividade humana, historiografia social e artes é comum
encontrarmos obras que destaquem o árduo caminho da socialização na escolarização de meninos negros, como: Des-Igualdade (2022); Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil (2016); Mãos Talentosas, Thomas Carter (2009) EUA; Encontrando Forrester, Gus Van Sant – 2000 EUA dentre outros. Já, no campo da Literatura, nós temos: Autobiografia Finding Freedom: writings from death row de Jarvis Jay Masters,
Querido Estudante Negro, da intelectual negra Bárbara Carine, Além de ensaios
oriundos de pesquisas acadêmicas que retratam o cotidiano escolar.
A diversidade de produções acima, nos mostra o quão é urgente e necessário produzir
afroperspectivas² que deem conta de discursar, a partir de um olhar mais criterioso que as organizações coletivas que possuem em seus estatutos a educação como um ponto de partida e estratégia coletiva possui o entendimento de que o sistema escolar é tendencioso, falho e segue com intento na ideologia das representações estereotipadas. Representações essas que marginalizam meninos negros, associam o gosto pela leitura como algo perigoso/suspeito e compara o exercício do ler como algo para mulheres, por isso, os mesmos poderiam ser induzidos a terem uma sexualidade distinta ao gênero de nascimento; Pensamento esse, que revela homofobia implícita.
Agora, devo terminar esta breve explanação afirmando que no Brasil 93,3% dos
escritores são brancos. E a escritura dessa diferença evidencia que existe a premissa de um anti-intelectualismo por parte de pessoas negras como traço cultural, quando na realidade, o que se tem na sociedade brasileira é um grande, repetitivo e maçante
discurso de que o negro é incapaz. Por essas e outras não nos esqueçamos do pastor
evangélico Joel Webbon (Texas|EUA) que pediu aos fieis que conversem com os seus
filhos acerca do perigo que pessoas negras representam: “30 vezes mais perigosos”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o protetorado britânico.
Ensaios|Chinua Achebe: tradução Isa Mara Lando – São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
PINTO DE CARVALHO, Marília. Escolarizando homens negros apud bell
hooks. Estudos Feministas, Florianópolis, 23(3):406, setembro-dezembro|2015.

Jacqueline de Obá | Professora
Jacqueline de Òbá é professora da Educação Básica (AAEE - SME/RJ), Técnica em Educação Especial com aperfeiçoamento em atuação do profissional de apoio escolar no processo de inclusão de alunos com deficiência promovido pelo Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia. Graduada em Letras Clássicas - UFRJ; Pesquisadora de Literaturas Africanas/UFRJ; Escritora; Articuladora e Mobilizadora Cultural; Mulher de Àse da Tradição de Èfón (Egbomi) e dirigente da Casa de Umbanda Vovó Cambinda do Cruzeiro das Almas e Caboclo Curié da Mata.
Contatos de Jacqueline de Obá:
Redes Sociais: Instagram
Artigo de Opinião: texto no qual o(a) autor(a) expressa e defende suas ideias, interpretações e vivências sobre determinados temas. As opiniões aqui apresentadas são de responsabilidade do(a) autor(a) e compõem a diversidade de vozes que o AxéNews valoriza e apoia. |








Adorei a forma como o texto articula experiência pessoal, referências teóricas e críticas sociais, sobretudo ao destacar como a interseccionalidade e o pensamento crítico de bell hooks se tornam fundamentais para pensar uma educação verdadeiramente antirracista. A escolha de colocar-se em primeira pessoa, autorizando o próprio Orí a falar, torna a escrita ainda mais potente, porque conecta memória ancestral, política e resistência. Além disso, o destaque para a invisibilização de meninos negros e a urgência de afroperspectivas mostra bem o quanto a escola, muitas vezes, ainda reproduz exclusões históricas em vez de combatê-las. É um texto forte, necessário e cheio de camadas.