Os desafios da Umbanda na Inglaterra: Apesar da falta de recursos, da logística intensa e das limitações locais, a cada gira renasce a fé e a alegria de estar em comunidade
- WR Express
- há 5 dias
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Por: Pai Marcos

✅ 29/09/2025 | 06:21
Em 2010, quando cheguei à Inglaterra, eu nem imaginava que houvesse Umbanda por aqui. Foram três anos até encontrar uma casa, e logo comecei a trabalhar. A experiência foi transformadora: sentir o cheiro da defumação, conversar com as entidades e viver a nossa linda religião mesmo tão longe de casa. Ainda assim, não posso negar que o caminho é cheio de desafios. Hoje quero compartilhar com vocês algumas das dificuldades que nós, brasileiros, enfrentamos para exercer e manter viva a Umbanda fora do Brasil.
Para começar, uma das maiores dificuldades é encontrar um espaço fixo para os trabalhos. Comprar um imóvel está fora de alcance e alugar locais adequados nem sempre é simples. Quando decidi abrir o TUEG, nossa primeira sede foi um sótão pequeno, alugado. Ali, cada detalhe exigia cuidado: cobrir a bagunça em respeito à espiritualidade, organizar imagens e velas sem correr o risco de incêndio e lidar com a impossibilidade de fazer defumação, já que o chão era de carpete. Isso também nos impedia de riscar os pontos das entidades. Mesmo com tantas limitações, a fé sempre encontrou um jeito de se manifestar.
Ficamos nesse sótão por seis meses, até que decidimos dar o próximo passo e alugar um salão comunitário. Na Inglaterra, é comum que prédios e associações de bairro ofereçam esses espaços coletivos para locação, e foi em um deles que realizamos nossas primeiras giras. A emoção era enorme, mas os desafios também. Precisávamos levar absolutamente tudo a cada trabalho e, ao final, desmontar e guardar novamente. Quando digo tudo, quero dizer TUDO: as imagens do congá, velas, objetos das entidades e até os itens da cantina. Cada encontro se tornava não apenas um momento de fé, mas também um verdadeiro exercício de logística, disciplina e dedicação.
Usávamos uma mesa simples, coberta com um pano branco, e sobre ela colocávamos algumas imagens de Orixás. Para nos adaptarmos às regras locais, precisávamos até cobrir o sensor de incêndio, já que os alarmes são extremamente sensíveis à fumaça. A defumação acontecia com todo o cuidado: portas e janelas abertas para que o cheiro se espalhasse sem disparar o sistema. Fazíamos a firmeza energética, abríamos a gira e, então, a magia se revelava. Por alguns instantes, aquele salão se transformava, e era como estar em um terreiro de Umbanda no Brasil.
Ao final, porém, vinha a parte mais difícil. Precisávamos retirar tudo novamente, limpar o espaço e deixá-lo como se nada tivesse acontecido. O tempo era sempre um desafio extra, já que a responsável pelo salão ficava na porta, à espera das chaves.
Então chegou a pandemia. Passamos a realizar giras online — uma experiência que manteve a corrente unida e que, de certa forma, também me fortaleceu. Pessoas de diferentes lugares puderam receber bênçãos da espiritualidade, mesmo à distância. Quando voltamos a nos reunir presencialmente, improvisamos encontros em um parque. Mas, assim que setembro trouxe o frio, ficou claro que seria preciso encontrar outro lugar para dar continuidade às giras.
Do improviso ao sagrado: a construção de um espaço cheio de axé
Passamos por três espaços diferentes até chegar onde estamos hoje. O primeiro não permitia velas, defumação ou o toque dos atabaques. No segundo, o ambiente lembrava uma casa noturna, carregado de uma energia pesada. Ainda assim, realizamos ali uma gira do Oriente com os Doutores e os Caboclos de Oxóssi, levando cura e aplicando Reiki. Até que, enfim, encontramos o salão comunitário em que permanecemos até hoje.
A rotina de organização segue a mesma e já está incorporada na organização da nossa corrente. Cada gira começa muito antes da abertura dos trabalhos: é preciso limpar o chão, preparar cadeiras, organizar os assentamentos, montar o congá, posicionar as pedras, ajustar a luz, pendurar a cortina, marcar a fita azul que divide a assistência e, além disso, arrumar cantina, bazar e recepção.
Às quintas-feiras, temos um pouco mais de fôlego: conseguimos entrar às 17h e temos até 18h45 para deixar tudo pronto. Já aos domingos, só recebemos a chave às 18h, o que nos deixa com apenas 45 minutos para organizar todo o espaço. Sim, é uma verdadeira corrida contra o tempo!
E talvez você se pergunte: por que limpar o local antes de começar? A resposta é simples. Precisamos cuidar também da energia do ambiente. Afinal, o salão é usado por vários grupos ao longo do dia e, aos domingos, somos sempre os últimos a entrar. Essa limpeza é o que transforma o espaço e permite que a gira aconteça com toda a sua força e beleza.
Diante de tantos desafios, alguns umbandistas costumam me perguntar: pai, como o senhor faz para garantir que a sua casa tenha axé? Como pode haver axé em um espaço que precisa ser montado e desmontado a cada gira, com assentamentos e Congá guardados e recolocados?
A resposta é simples: o axé se revela e se concretiza de muitas formas. Temos uma assistência firme e presente; em giras de Exus e Pombogiras, já recebemos mais de 100 pessoas em busca de orientação e acolhimento. Hoje, nossa corrente conta com +70 médiuns, cerca de 8 em treinamento para integrar a casa e ainda uma lista de espera de irmãos e irmãs que desejam caminhar conosco.
Aqui está um dos nossos grandes aprendizados enquanto umbandistas na Inglaterra. O axé não está apenas nas paredes de um terreiro fixo, mas na energia que se cria quando fé, devoção e comunidade se encontram. Ele nasce das rezas, dos atabaques, da entrega das entidades e da confiança de quem chega em busca de amparo. É essa corrente viva que sustenta a casa e faz com que, mesmo em solo estrangeiro, o TUEG seja um verdadeiro terreiro de Umbanda.
Desafios além das paredes
Conto tudo isso porque, embora a casa tenha apenas oito anos, e mesmo nesse esquema de montar e desmontar a cada gira, já conseguimos ajudar muita gente - tanto os irmãos da corrente quanto pessoas que chegam em busca de amparo espiritual.
Praticar nossa religião fora do Brasil traz ainda outros desafios que poucos imaginam. Aqui não existem casas de Umbanda onde possamos comprar velas de duas cores, incensos triangulares ou algumas ervas básicas. Guias, firmezas, imagens de entidades e até as próprias pembas também são difíceis de conseguir. Por isso, cada vez que alguém viaja ao Brasil, pedimos ajuda para trazer materiais. As velas, encomendamos por transportadora. As guias e miçangas costumam vir de Portugal, quando alguém passa por lá. E ainda tem os itens simbólicos: charutos, cigarros de palha e a pinga. Charuto até se encontra, mas a um preço altíssimo; cigarro de palha só vem do Brasil ou de Portugal; e a pinga, que no Brasil é barata, aqui chega a custar o valor de uma refeição.
Sem falar das roupas brancas, panos de cabeça, cartolas de Exu, bengalas e apetrechos de caboclos; tudo exige esforço, improviso e criatividade para manter viva a tradição. Ainda assim, não desistimos. Fazemos questão de que cada gira aconteça com a dignidade que a Umbanda merece.
No espaço atual, ao menos conseguimos acender velas, defumar e até fumar durante os trabalhos, sempre com cuidado. Ao final, portas e janelas precisam ser abertas para dissipar a fumaça, qualquer vela caída deve ser recolhida e o chão limpo imediatamente. Em dias de festa, a correria é ainda maior: montar tudo, celebrar com fé e depois desmontar em ritmo acelerado. Muitas vezes, nem todos podem ficar até o fim, pois precisam correr para não perder o trem ou o metrô de volta.
Esses são apenas alguns dos desafios que enfrentamos até aqui e que quis dividir com vocês. Mas a caminhada ainda guarda muitas outras histórias — como as entregas e os trabalhos realizados em praias, mares, cachoeiras e matas. Essas experiências, porém, ficam para um próximo artigo.
Mas o que eu realmente queria contar é que, mesmo diante de tantas dificuldades, seguimos firmes. A cada vela acesa, a cada ponto cantado, a cada gira aberta, mostramos que a Umbanda não tem fronteiras. Ela floresce onde houver fé, comunidade e entrega. No coração de cada médium, de cada consulente e de cada entidade que se manifesta, está a prova de que o axé atravessa oceanos e recria raízes, mesmo em solo estrangeiro.
No TUEG, aprendemos todos os dias que a Umbanda é resistência, é amor, é acolhimento. E que, apesar das distâncias e dos desafios, ela continua viva, transformadora e presente para todos que a buscam. Juntos, continuaremos levando, ao mundo inteiro, a bandeira de Oxalá.
Que Pai Ogum abençoe a todos vocês, leitores.
Motumba e muuuito axé!

Pai Marcos
Pai Marcos, fundador e zelador do Terreiro de Umbanda Estrela Guiada UK - TUEG UK, é um homem com uma rica experiência no mundo espiritual. Desde cedo, teve a oportunidade de explorar diversas vertentes, como o Catolicismo, Kardecismo, Mesa Branca, Reiki, Umbanda e Umbandaime. Essa jornada lhe proporcionou um vasto conhecimento e uma visão abrangente sobre diferentes práticas e filosofias espirituais... [+ informações de Pai Marcos]
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