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Ogum e São Jorge: quando o cavaleiro da Capadócia chega a Aruanda

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • 23 de abr.
  • 5 min de leitura

Por: Joana Bahia

23/04/2025 | 15:53


Se meu pai é Ogum, vencedor de demanda, ele vem de Aruanda pra salvar filhos de umbanda/ Ogum, Ogum Iara, salve os campos de batalha, salve as sereias do mar/ Ogum , Ogum Iara”.


O canto é uma forma de oração. Para mim, esse ponto era a música da minha infância, pois eu morava ao lado de um terreiro de umbanda no Encantado. São muitas músicas feitas para Ogum, interpretadas por Clara Nunes, e lindamente produzidas pelo seu mais fiel devoto: Zeca pagodinho. Só ele produziu 24 letras, unindo Ogum, São Jorge ao imaginário do subúrbio carioca.



São Jorge é popular no Brasil desde o século XVII, com a urbanização do país, porém o cavaleiro que matava dragões em prol da fé cristã contra a expansão do islamismo, ao chegar no Brasil passa por grandes transformações. Se São Jorge se chega ao Brasil colonizador e imperial pelo domínio português, aqui ele é civilizado por Aruanda e pela devoção popular que transita entre as religiões afrobrasileiras e as igrejas católicas.


São Jorge era um dos santos invocados pelos cavaleiros cristãos que lutavam contra a cultura do islã, e, juntamente com São Miguel, São Tiago, São Sebastião e Santo Antônio, compõe o panteão dos santos guerreiros do catolicismo. A guerra santa era religiosa, pois o inimigo da instituição cristã era a própria personificação do Mal, ou seja, como a própria corporificação do demônio.” Muitos exércitos de vários países tinha o santo como patrono da Arma de cavalaria.


São Jorge chegou ao Brasil ainda como o senhor da ordem, muitos autores mostram que ao serem cultuados pelos donos de Ogum, isto é, os negros escravizados, porém ele ganha a insubordinação como parte da sua mesma natureza. São os orixás que dão um colorido novo e maravilhoso ao tal santo. A complexidade da lógica dos orixás lhe cai bem no dia a dia da devoção popular. Demandar, se revoltar e ser insubordinado, sendo ao mesmo tempo estratégico para o inimigo não enxergar, e nem suas armas lhe alcançarem o corpo, como diz na oração de fechamento de corpo, “Jorge da Capadócia” musicada por Jorge Benjor, é a forma de apropriação popular dos vários lados da vida como ela é.


O santo tem múltiplas faces e ganha muito tendo Ogum ao seu lado. Não são iguais, são cosmologias religiosas distintas, porque São Jorge não é Ogum, porém no dia a dia dos brasileiros eles andam de muitas formas, com diferentes passos, e com muitos significados. Andam lado a lado e as vezes não. Porque a devoção popular é fascinante, tem múltiplas vozes, corpos e ninguém lhe segura. Não falamos aqui de sincretismo, mas de trânsitos religiosos, pois catolicismos temos vários, e muitos negros escravizados antes de chegarem ao Brasil, já eram católicos “ao seu modo”, como a exemplo, no Congo. O catolicismo africano não é igual ao catolicismo que achamos que conhecemos. Os estudos do campo das ciências sociais e da história tem demonstrado a complexidade das Áfricas e de como os trânsitos religiosos não são simples transposições.


As religiões se movem, e nenhuma crença popular é igual àquela de onde se originou, neste sentido, Ogum toma conta de São Jorge. As crenças ganham novos atores sociais e novos espaços de mediação, por isso podem andar juntas ou não, isso vai depender dos grupos sociais envolvidos.


Fechar o corpo, ritual que junta devoto ao santo, é também parte da cultura religiosa do candomblé. O poder da oração musicada “Jorge da Capadócia”, é porque é no poder das palavras que o corpo do devoto se une ao santo. A cultura corporal é presente não apenas no catolicismo popular, mas na cultura afro religiosa. Fechar o corpo é selar um acordo com o sagrado.


A invencibilidade de São Jorge é transferida ao devoto, o dia de a dia dos assaltos, da contravenção, das picuinhas e violências da cidade, tem que ter um santo forte para chamar de seu. E nada como chamar os dois: Ogum e São Jorge. O universo religioso popular é fantástico, nada prático, e as vezes pouco utilitarista. Ao passar por Aruanda, e pelos rios africanos o santo vira outro santo, e quem ganha somos nós que podemos escolher que forças mágicas selecionamos para nós.


Pessoas herdam a devoção da família, essa é parte de uma história e da memória familiar. Nascem com Ogum, ou com São Jorge, ou com ambos. Muitos ganham o seu nome porque nasceram no mesmo dia. Eu herdei o São Jorge do meu pai, que era filho de Ogum.


As giras, oferendas e comidas para Ogum e as Festas de São Jorge ocorrem dia 23 de abril num circuito de comemorações espalhadas por toda a cidade do Rio de Janeiro: igrejas, quadras de escolas de samba, ruas e praças. A grande mídia, as vezes mais cristã que os padres, dá destaque, sobretudo, às comemorações organizadas pelas igrejas católicas que o têm como orago. Tais igrejas situam-se na Praça da República, região do Centro da cidade; em Quintino Bocaiuva (com a famosa missa da Alvorada), bairro da Zona Norte; e em Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Para além dos limites da capital fluminense, temos eventos e giras para Ogum e festas de São Jorge realizadas em Itaguaí, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Nilópolis, São Gonçalo, Niterói e Valença.


Escolas de samba lhe rende homenagens, também rodas de samba e choro. A exemplo bateria da Escola de Samba Império Serrano toca para Ogum, seu protetor. Muitas escolas de samba tocam para seus orixás, sendo a bateria o eixo central da devoção. Há alguns anos tinha carreata no Império Serrano, para a igreja de São Jorge no bairro de Quintino. De lá, após uma parada para entrar na Igreja e benzer os fiéis sambistas, eles seguiam até o centro umbandista Caminheiros da Verdade.


Sopa de galo e feijoada, comidas preceitos das religiões afro brasileiras, estão presentes em (quase) todas, as comemorações populares privadas e públicas. Muitas são promessas de fé, em que servir a comida de Ogum em quantidade farta a todos, é parte do preceito. Todas alimentam _nos espaços públicos _o espírito e o corpo indistintamente.


Idas e vindas, e a grande mobilidade entre católicos, umbandistas, candomblecistas e grupos outros que não pertencem a nenhum segmento religioso, mas que amam Jorge e Ogum, mostra que se por um lado parece haver uma recusa ao sincretismo, cada um em seu quadrado, por outro lado essa gente toda encontra Ogum e / ou São Jorge em vários lugares da cidade. A fé mobiliza os dois, ora juntando, ora separando. Não é sincrético e nem há amálgama, mas espaços de encontro, desencontro, enfim as fés são vivas e constantemente negociadas. Se um não é o outro, em alguns momentos a devoção popular promove “esbarrões, solavancos, uniões” com todos os seus paradoxos. Vou a igreja de São Jorge e sinto a presença de Ogum. Sou católico e de Ogum. Sou de Ogum e ponto final, nada de São Jorge, também é possível.


Ser cavaleiro, é ser errante, ser tão nobre quanto estratégico. Se a história dos santos ganha novas interpretações populares, imagina o santo diante da complexidade e força de Ogum.

Brincar a fé é parte da cultura afro religiosa, o viver a fé na alegria e no corpo, traz no comércio e na arte de negociar _presente há muitas décadas_ nossa vivência espiritual que circula no estado negro, o nosso Rio de Janeiro, de Iemanjá e de também de Ogum. Há muitos modos de sentir o sagrado, e sutis são as formas em que esse se múltipla.




Joana Bahia - AxéNews

Joana Bahia

Professora titular da UERJ. Coordenadora do Nuer (Núcleo de estudos da religião). Autora do livro O Rio de Iemanjá: um olhar sobre a cidade e a devoção, publicado pela editora telha em  2023 e vários artigos sobre religiões afro brasileiras, em especial Omoloco, umbanda, candomblés, Iemanjá e expansão das religiões afro brasileiras no mundo... [+ informações de Joana Bahia]


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