O sagrado em diálogo: filosofia ocidental e religiões afro-brasileiras na contemporaneidade
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Por: Adriano Cabral

✅ 16/08/2025 | 14:23
1. Introdução
A religião, em sua multiplicidade de formas e expressões, constitui uma das mais antigas manifestações do espírito humano. Desde os primórdios das civilizações, a experiência do sagrado orientou comunidades, estruturou identidades e ofereceu respostas às inquietações existenciais que a razão isoladamente não soube responder. A filosofia, por sua vez, desde a Grécia antiga até a contemporaneidade, dedicou-se a pensar criticamente esse fenômeno, ora buscando justificá-lo, ora tentando delimitá-lo ou mesmo superá-lo. O diálogo entre religião e filosofia é, portanto, não apenas inevitável, mas constitutivo da própria história do pensamento.
No caso brasileiro, a reflexão sobre religião ganha contornos específicos quando voltamos o olhar às tradições de matriz africana, como o Candomblé, Omolokô e a Umbanda. Trazidas ao país no contexto da diáspora forçada da escravidão, essas tradições preservaram saberes ancestrais e se reinventaram em solo nacional, tornando-se não apenas práticas espirituais, mas também formas de resistência cultural e política frente ao racismo estrutural. Apesar de sua relevância histórica e social, essas religiões foram, por séculos, invisibilizadas ou reduzidas a estereótipos, não encontrando espaço nos debates clássicos da filosofia da religião, muitas vezes limitados à tradição judaico-cristã e à racionalidade europeia.
É nesse hiato que se insere a proposta deste pequeno artigo: articular grandes correntes da filosofia da religião — representadas por autores como Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche, Durkheim, Eliade e Bauman — com a riqueza simbólica e prática das religiões de matriz africana. Pretende-se, assim, ampliar o campo da filosofia da religião, deslocando-o de um olhar exclusivamente eurocêntrico para um horizonte mais plural e intercultural, capaz de reconhecer que no corpo, no canto, no axé e no terreiro também há filosofia.
A relevância deste estudo torna-se ainda mais evidente no cenário contemporâneo, em que as tensões entre razão e fé, tradição e modernidade, identidade e globalização se intensificam. Se, por um lado, vivemos em um mundo marcado pela liquidez das identidades e pela racionalização técnica, por outro, assistimos à permanência e ao fortalecimento de práticas religiosas que resgatam a ancestralidade e oferecem sentido em meio à fragmentação social. A filosofia, diante desse contexto, é chamada a pensar não apenas a estrutura abstrata da religião, mas também a concretude de suas manifestações na vida coletiva.
Por isso, o artigo será desenvolvido em diálogo interdisciplinar: a partir da filosofia, mas também dialogando com a sociologia, a antropologia e a ciência política. O percurso se organizará em sete seções: (i) a introdução ao problema; (ii) uma análise das concepções clássicas de religião na filosofia moderna; (iii) a compreensão do sagrado enquanto estrutura social e simbólica; (iv) as críticas filosóficas à religião e a possibilidade de superação em favor de uma filosofia da vida; (v) a relação entre religiosidade e modernidade líquida; (vi) a interface entre religião, Estado e direitos; e, por fim, (vii) a conclusão, que busca sintetizar as contribuições possíveis para uma filosofia da religião ampliada, onde as tradições africanas se afirmam como patrimônio de sabedoria e resistência.
Assim, ao longo deste trabalho, a questão que orienta a reflexão pode ser enunciada nos seguintes termos: de que modo a filosofia, ao revisitar seus próprios fundamentos, pode reconhecer nas religiões de matriz africana não apenas objetos de estudo, mas também fontes legítimas de filosofia da religião, com potência crítica e existencial para o mundo contemporâneo?
2. O FENÔMENO RELIGIOSO NA FILOSOFIA CLÁSSICA E MODERNA
2.1. DESCARTES E A RELIGIÃO COMO FUNDAMENTO DA RAZÃO
René Descartes (1596–1650), considerado o “pai da filosofia moderna”, inscreveu em sua obra um projeto de fundamentação da certeza. Para ele, a razão só alcança verdade quando encontra em Deus a garantia última de sua validade. Em suas Meditações Metafísicas, ao refletir sobre a dúvida radical, Descartes chega ao famoso cogito ergo sum, mas logo reconhece que a própria ideia de perfeição e de infinitude não pode ser originada de um ser finito como o homem. Escreve ele:
“É necessário concluir que a ideia que tenho de Deus foi colocada em mim por uma natureza verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que possui em si todas as perfeições que eu posso conceber.” (Meditações, III).
Assim, Deus é não apenas fundamento moral, mas também epistemológico: a garantia de que o mundo e a razão não são ilusórios. Nesse sentido, a religião cartesiana é abstrata, racional, desprovida de corporeidade: Deus é ideia pura, sem relação direta com o mundo sensível.
É justamente nesse ponto que se abre um espaço crítico para pensar as religiões de matriz africana. Nessas tradições, o divino não é uma abstração metafísica distante, mas força vital que se manifesta nos elementos da natureza, no corpo que dança, no transe que se entrega, no axé que circula entre humanos, orixás e ancestrais. Se em Descartes Deus é fundamento lógico do pensamento, no Candomblé e na Umbanda o sagrado é fundamento vital da existência coletiva.
Dessa forma, podemos afirmar que as religiões africanas revelam aquilo que a filosofia cartesiana não contemplou: que a experiência religiosa pode ser também experiência do corpo, da música, do tempo cíclico e da natureza, onde razão e sensibilidade se encontram em unidade.
2.2. KANT E A RELIGIÃO NOS LIMITES DA RAZÃO
Immanuel Kant (1724–1804), ao escrever A Religião nos Limites da Simples Razão (1793), buscou redefinir o lugar da religião no mundo iluminista. Para ele, a religião não deveria se fundamentar em ritos exteriores ou dogmas revelados, mas na moralidade universal inscrita na razão prática. Nas palavras de Kant:
“A religião é o reconhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos.” (A Religião nos Limites da Simples Razão, Livro I).
Assim, a verdadeira religião não está nos rituais ou nos símbolos, mas na adesão da vontade ao imperativo categórico, que exige que se aja de modo que a máxima de nossa ação possa ser universalizada. Kant, portanto, racionaliza a religião, reduzindo-a a uma ética universal, válida para todo ser racional.
Entretanto, ao aplicar essa leitura ao contexto das religiões afro-brasileiras, surgem limites e novas possibilidades. É inegável que também nelas a religião é ética: os ensinamentos dos orixás, a disciplina do terreiro, o respeito à ancestralidade e à comunidade configuram um código moral vivido coletivamente. Porém, essa ética não se apresenta como pura abstração racional. Pelo contrário, ela é transmitida nos ritos, nas histórias míticas (itans), nas danças e cantos — meios concretos de ensinar valores de justiça, respeito, equilíbrio e cuidado com a natureza.
Enquanto Kant separa nitidamente moralidade de ritualidade, as tradições africanas integram ambas: o rito não é mero adorno externo, mas veículo pedagógico de transmissão ética. Nesse sentido, a religião afro-brasileira desafia a filosofia kantiana a reconhecer que o simbólico, o estético e o ritual podem ser também portadores de razão moral.
2.3. ENTRE RAZÃO E ANCESTRALIDADE
Descartes e Kant representam dois momentos fundamentais do pensamento moderno: o primeiro, a tentativa de fundar a certeza racional em Deus como ideia perfeita; o segundo, a redução da religião a moralidade racional. Ambos, porém, compartilham um mesmo horizonte: o afastamento da corporeidade, da natureza e do mito como dimensões legítimas da experiência religiosa.
As religiões de matriz africana, ao contrário, oferecem uma filosofia prática em que razão, corpo, mito e natureza permanecem indissociáveis. O orixá que se manifesta no transe, o cântico que narra uma cosmologia, o ritual que transmite valores éticos à comunidade — tudo isso revela que há racionalidade na ancestralidade.
Assim, ao revisitar Descartes e Kant, não apenas os criticamos, mas também os ampliamos. A filosofia da religião, quando se abre às tradições africanas, reconhece que há múltiplos modos de articular razão e fé, sendo o terreiro um espaço privilegiado de filosofia vivida.
3. O SAGRADO COMO ESTRUTURA SOCIAL E MÍTICA
3.1. DURKHEIM: RELIGIÃO COMO FATO SOCIAL
Émile Durkheim (1858–1917), em sua obra clássica As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), propõe compreender a religião não como ilusão individual, mas como fato social, isto é, uma instituição que mantém a coesão de uma comunidade. Para Durkheim, a distinção fundamental da religião é aquela entre o sagrado e o profano.
“A religião é um sistema solidário de crenças e práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas e proibidas, crenças e práticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada Igreja, todos os que a elas aderem.” (As Formas Elementares da Vida Religiosa, cap. I).
Segundo ele, o sagrado é menos uma realidade metafísica que uma força social: aquilo que une, dá identidade e sentido à coletividade. Nesse sentido, a religião é inseparável da vida comunitária: celebrar o sagrado é também celebrar a própria coesão do grupo.
Essa definição encontra ressonância direta nas tradições afro-brasileiras. O terreiro não é apenas um espaço ritual, mas núcleo comunitário de proteção, solidariedade e resistência cultural. Nele se compartilham saberes, se constrói identidade e se preserva memória ancestral. Os ritos de iniciação, as festas públicas de orixás, as oferendas e os toques de atabaque não apenas celebram divindades, mas reafirmam a pertença social de cada adepto, transmitindo valores de respeito, reciprocidade e coletividade.
Assim, as religiões de matriz africana exemplificam o que Durkheim via como essência da religião: não a crença individual, mas o vínculo social que sustenta a comunidade. O axé, nesse sentido, pode ser compreendido filosoficamente como essa energia coletiva que circula e mantém viva a coesão do grupo.
3.2. ELIADE: O SAGRADO E O PROFANO
Mircea Eliade (1907–1986), em sua obra O Sagrado e o Profano (1957), amplia a reflexão ao mostrar que o fenômeno religioso se estrutura pela manifestação do sagrado no mundo, o que ele chama de hierofania. Para Eliade, o sagrado não se reduz ao social, mas se revela em símbolos, mitos e ritos que conferem sentido à existência.
“O sagrado é o real por excelência, ao qual o homem religioso se reporta constantemente. A manifestação do sagrado funda o mundo.” (O Sagrado e o Profano, cap. I).
Dessa perspectiva, a religião não é apenas um vínculo comunitário, mas uma forma de reencantar o mundo, de estabelecer um cosmos ordenado a partir do contato com o divino.
É precisamente isso que encontramos nas tradições de matriz africana. Os mitos dos orixás (os itans) não são meras histórias fabulosas: eles organizam a visão de mundo, explicam a relação entre seres humanos, natureza e divindades, oferecendo uma cosmologia viva. O transe de possessão, por sua vez, é uma hierofania: momento em que o sagrado se manifesta no corpo do iniciado, tornando o divino presente e palpável na comunidade.
Enquanto Eliade fala do mito como narrativa arquetípica, no Candomblé e no Omolokô os mitos são performados: dançados, cantados, dramatizados no rito. O corpo é escritura sagrada, e a música é linguagem de comunicação com o transcendente. A sacralidade não está apartada da vida cotidiana, mas imanente à natureza, às águas de Oxum, aos ventos de Iansã, às folhas de Ossain.
3.3. SÍNTESE: O TERREIRO COMO ESPAÇO SOCIAL E CÓSMICO
A leitura de Durkheim e Eliade permite compreender as religiões afro-brasileiras em duas dimensões complementares:
1. Social (Durkheim): o terreiro enquanto comunidade moral, espaço de resistência, coesão e identidade.
2. Cósmica (Eliade): o terreiro como microcosmo do universo, lugar onde o sagrado se manifesta e o mundo é continuamente recriado.
Nesse cruzamento, percebemos que a experiência religiosa africana no Brasil é ao mesmo tempo uma prática social e uma cosmologia simbólica. Ela guarda, portanto, tanto a função de preservar laços comunitários quanto de oferecer uma visão de mundo em que o humano, a natureza e o divino estão em profunda inter-relação.
Essa dupla dimensão desafia o pensamento moderno ocidental, que tende a separar o racional do mítico, o social do sagrado. No terreiro, tudo é unidade: mito e sociedade, rito e ética, corpo e espírito. Trata-se, assim, de uma filosofia vivida, que resiste ao esfacelamento contemporâneo e propõe uma alternativa de sentido existencial.
4. CRÍTICA E SUPERAÇÃO: FILOSOFIA DA VIDA E ESPÍRITO
4.1. NIETZSCHE: CRÍTICA AO CRISTIANISMO E A AFIRMAÇÃO DA VIDA
Friedrich Nietzsche (1844–1900) foi um dos filósofos que mais radicalmente criticou a religião, sobretudo o cristianismo. Em O Anticristo (1888), ele descreve o cristianismo como uma religião que nega a vida, fundamentada na culpa e na repressão dos instintos:
“O cristianismo é uma metafísica do carrasco.” (O Anticristo, §6).
Para Nietzsche, o cristianismo transformou a força vital em pecado, condenando o corpo e a natureza, instaurando uma moral do ressentimento. Ele propôs, em contraste, uma filosofia dionisíaca: a celebração da vida, do corpo, da música, da embriaguez criadora.
Se aplicamos esse horizonte às religiões afro-brasileiras, torna-se evidente o contraste: nelas, o corpo não é negado, mas exaltado. O transe de orixá, o toque dos atabaques, a dança circular — tudo isso é celebração do corpo como veículo do sagrado. A música não é mero ornamento, mas essência do rito, que convoca o divino e cria comunidade.
Assim, poderíamos dizer que, se Nietzsche buscava uma religião afirmativa, que substituísse a culpa pela potência vital, as religiões de matriz africana já oferecem esse caminho: uma espiritualidade em que corpo e natureza são integrados, e em que a existência não é negada, mas intensificada pelo axé. Nessa perspectiva, o Candomblé e o Omolokô podem ser lidos como expressões concretas de uma religiosidade dionisíaca, em que a vida é celebrada em toda sua intensidade.
4.2. HEGEL: A RELIGIÃO COMO MANIFESTAÇÃO DO ESPÍRITO ABSOLUTO
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770–1831), por outro lado, via a religião como etapa necessária no desenvolvimento do Espírito Absoluto. Em sua Fenomenologia do Espírito (1807), afirma que a religião é uma forma de o espírito se reconhecer simbolicamente, preparando o terreno para a filosofia.
“Na religião, o espírito tem a consciência de sua essência absoluta, mas ainda em forma de representação; na filosofia, essa essência é pensada.” (Fenomenologia do Espírito, cap. VII).
Para Hegel, os mitos, símbolos e ritos são representações que antecipam a verdade filosófica, mas de maneira ainda figurativa. A filosofia teria, então, o papel de superar a religião, alcançando o conceito puro.
No entanto, se olharmos a partir das tradições afro-brasileiras, essa hierarquia pode ser questionada. Os mitos dos orixás (itans), os rituais de iniciação e o transe não são apenas representações figurativas de uma verdade abstrata, mas modos próprios de filosofar. O mito de Xangô que equilibra justiça e poder, ou de Oxum que ensina a sabedoria da delicadeza, não são meros símbolos provisórios: são expressões de uma racionalidade estética e narrativa, que transmitem filosofia em forma mítica.
Enquanto Hegel coloca a filosofia como destino final da religião, o terreiro nos mostra que mito e filosofia podem coexistir como linguagens diferentes, igualmente portadoras de sabedoria. O rito não é apenas etapa transitória rumo ao conceito, mas experiência completa em si mesma, em que o humano encontra sentido.
4.3. ENTRE CRÍTICA E ESPÍRITO: SUPERAÇÃO CRIADORA
Nietzsche e Hegel nos oferecem duas perspectivas distintas: o primeiro, uma crítica radical à religião como negação da vida; o segundo, uma valorização da religião como momento do espírito, mas subordinado à filosofia conceitual.
As religiões de matriz africana, entretanto, oferecem uma via alternativa: elas não negam a vida, mas a celebram (Nietzsche), e não precisam ser superadas pela filosofia, pois já são em si mesmas filosofia vivida (contra Hegel). O terreiro, ao unir corpo, mito, música e comunidade, realiza o que poderíamos chamar de uma filosofia encarnada: não abstrata, mas vivida no ritmo da vida.
Assim, as tradições afro-brasileiras não apenas resistem ao olhar eurocêntrico, mas também revelam novos horizontes para a filosofia da religião: horizontes em que a sabedoria não está apenas nos conceitos, mas também nos cantos, nas danças e nas narrativas ancestrais que mantêm viva a potência do espírito humano.
5. RELIGIÃO E MODERNIDADE LÍQUIDA
5.1. BAUMAN: INSEGURANÇA E BUSCA POR PERTENCIMENTO
Zygmunt Bauman (1925–2017) é um dos pensadores mais importantes para compreender as transformações sociais e culturais da contemporaneidade. Em obras como Modernidade Líquida (2000) e Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual (2001), ele descreve um mundo marcado pela fluidez, pelo individualismo e pela fragmentação das identidades.
Segundo Bauman, a modernidade líquida dissolveu as instituições sólidas que antes estruturavam a vida coletiva — família, tradição, comunidade, religião institucionalizada —, deixando o indivíduo entregue a um mercado de escolhas, mas também a uma profunda sensação de insegurança. Escreve ele:
“Na vida líquida, as relações são frágeis, temporárias, descartáveis. A busca pela segurança e pelo pertencimento é, portanto, uma das marcas mais dolorosas da experiência contemporânea.” (Modernidade Líquida, cap. I).
Nesse cenário, a religião aparece como um espaço privilegiado de reencontro com a segurança, oferecendo ao indivíduo não apenas respostas espirituais, mas também comunidade e identidade.
5.2. RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO PRESENTE
Aplicando essa reflexão ao contexto das religiões afro-brasileiras, percebemos que o terreiro responde justamente à necessidade contemporânea de pertencimento e enraizamento. Diferente da lógica líquida que trata tudo como provisório e descartável, o terreiro oferece continuidade, tradição e memória ancestral.
O ingresso em uma comunidade religiosa de matriz africana não é apenas adesão a uma crença, mas incorporação em uma linhagem espiritual, marcada por ritos de iniciação, vínculos duradouros e uma ética coletiva. O iniciado não é apenas “crente”, mas “filho de santo”, isto é, membro de uma família ampliada que transcende o tempo e conecta vivos e ancestrais.
Além disso, em um mundo em que a natureza é frequentemente reduzida a recurso explorável, essas religiões oferecem uma visão cosmológica em que a floresta, o rio, o mar e as folhas não são apenas elementos materiais, mas morada dos orixás e portadores de força vital. Em tempos de crise climática e ambiental, esse olhar adquire ainda maior relevância filosófica: trata-se de uma ecologia espiritual que resiste à mercantilização da vida.
5.3. IDENTIDADE, RESISTÊNCIA E ESPIRITUALIDADE AFRO
Bauman observa que, diante da insegurança contemporânea, muitos buscam identidades “fortes” e comunidades de pertencimento. As religiões de matriz africana se apresentam nesse horizonte não apenas como refúgio espiritual, mas como afirmação política e cultural.
O culto aos orixás e ancestrais é, ao mesmo tempo, espiritualidade e resistência contra a intolerância religiosa, contra o racismo e contra a invisibilidade histórica. O terreiro é espaço de preservação da memória africana em solo brasileiro, mas também espaço de reinvenção, capaz de dialogar com a realidade urbana e globalizada.
Assim, em um mundo líquido em que tudo se desfaz rapidamente, o terreiro se ergue como espaço sólido de sentido. A ancestralidade funciona como raiz contra o esfacelamento identitário; o axé, como energia vital que une e fortalece; e a coletividade, como antídoto contra o individualismo consumista.
5.4. SÍNTESE: O SAGRADO COMO RAIZ EM MEIO À FLUIDEZ
A leitura de Bauman aplicada às tradições africanas nos permite concluir que essas religiões não apenas sobrevivem, mas respondem a demandas profundas do mundo contemporâneo. Onde a modernidade líquida gera insegurança, o terreiro gera pertencimento; onde a sociedade dissolve tradições, o culto preserva a ancestralidade; onde a racionalidade instrumental explora a natureza, os orixás a sacralizam.
Portanto, longe de serem “reliquias do passado”, as religiões de matriz africana mostram-se profundamente atuais, oferecendo ao mundo líquido um horizonte de solidez, memória e espiritualidade enraizada.
6. RELIGIÃO, ESTADO E DIREITOS
6.1. LIBERDADE RELIGIOSA COMO FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso VI, assegura a liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção de seus locais de celebração. Esse princípio é reforçado por legislações como a Lei nº 7.716/1989, que criminaliza atos resultantes de discriminação ou preconceito de religião, e por iniciativas como a instituição do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro), criado pela Lei nº 11.635/2007.
Essas medidas refletem a compreensão de que a religião não é apenas questão de foro íntimo, mas também um direito coletivo e cultural. No caso das tradições de matriz africana, esse reconhecimento é ainda mais crucial, considerando o histórico de perseguição, criminalização e estigmatização sofrido por essas comunidades desde o período colonial.
Assim, proteger juridicamente o terreiro significa mais que assegurar a liberdade de culto: significa garantir a preservação da memória afro-brasileira, do patrimônio imaterial e da dignidade de populações historicamente marginalizadas.
6.2. FILOSOFIA POLÍTICA: JUSTIÇA, DELIBERAÇÃO E RECONHECIMENTO
A filosofia política contemporânea oferece marcos importantes para pensar a proteção das religiões de matriz africana. John Rawls, em Uma Teoria da Justiça (1971), propõe o princípio da equidade: as instituições devem garantir que minorias religiosas tenham condições reais de exercer suas práticas em igualdade de condições. Nesse sentido, uma democracia justa não apenas tolera a diversidade, mas a promove como parte essencial de seu tecido moral.
Jürgen Habermas, em sua teoria do agir comunicativo, sustenta que a legitimidade democrática só pode ser alcançada por meio da inclusão de todas as vozes no espaço público. Aplicando isso às religiões afro-brasileiras, significa reconhecer que os saberes do terreiro também devem ter espaço de expressão e escuta, não sendo reduzidos a folclore ou superstição. O diálogo intercultural, para Habermas, é condição da democracia plural.
Boaventura de Sousa Santos aprofunda essa discussão ao criticar a “monocultura do saber” e propor a ideia de epistemologias do Sul. Para ele, a justiça social passa necessariamente pela justiça cognitiva: reconhecer que as tradições africanas são também formas de conhecimento, filosofia e ciência de vida. Nesse horizonte, proteger o Candomblé, o Omolokô e a Umbanda é reconhecer que o terreiro é espaço de produção de saber legítimo, e não apenas de prática religiosa.
6.3. RELIGIÃO COMO DIREITO CULTURAL E JUSTIÇA HISTÓRICA
Se pensarmos a partir de uma perspectiva filosófico-jurídica ampliada, podemos afirmar que as religiões de matriz africana não devem ser defendidas apenas como “culto religioso”, mas como direito cultural e histórico. Elas constituem patrimônio imaterial da humanidade, como reconhecido em iniciativas do IPHAN e da UNESCO, e carregam consigo valores de ancestralidade, resistência e coletividade que transcendem a esfera individual.
Nesse sentido, a luta contra a intolerância religiosa não é apenas uma luta pela liberdade de crença, mas também pelo reconhecimento de identidades coletivas, pela reparação histórica das violências da escravidão e pelo direito à memória. A filosofia do direito, nesse ponto, se alia à sociologia da religião e à antropologia para compreender que a proteção legal é inseparável da justiça histórica.
6.4. SÍNTESE: O ESTADO COMO GUARDIÃO DA PLURALIDADE
O diálogo entre Constituição, legislação e filosofia política revela que a proteção das tradições afro-brasileiras é um dever democrático e civilizatório. Enquanto Rawls destaca a equidade, Habermas enfatiza o diálogo e Boaventura clama por justiça cognitiva, todos convergem para um ponto comum: a democracia só é plena quando reconhece e protege a diversidade de suas formas de vida.
Assim, o Estado brasileiro, ao assegurar os direitos das comunidades de terreiro, não está apenas cumprindo uma função legal, mas afirmando o valor da pluralidade religiosa como parte constitutiva da identidade nacional. A filosofia, nesse contexto, reforça que a proteção do sagrado é também proteção da dignidade humana e da memória coletiva.
7. CONCLUSÃO
A filosofia da religião, em sua tradição ocidental, foi marcada por um percurso que buscou compreender a fé sob o prisma da razão. Descartes, ao fundamentar a certeza em Deus como ideia perfeita, e Kant, ao reduzir a religião à moralidade racional, exemplificam uma tendência que privilegiou a abstração lógica em detrimento da corporeidade, do mito e da sensibilidade. Hegel, ao conceber a religião como etapa do espírito rumo ao conceito, reafirmou essa hierarquia. Nietzsche, em contrapartida, desmontou a estrutura do cristianismo como religião da culpa, apontando para uma espiritualidade afirmativa e vitalista.
Durkheim e Eliade, cada qual a seu modo, deslocaram a questão: mostraram que a religião não pode ser compreendida apenas como crença individual, mas como estrutura social e cósmica, onde o sagrado se manifesta em mitos, ritos e símbolos que organizam a vida coletiva. Bauman, por sua vez, ofereceu uma leitura contemporânea: em um mundo líquido, marcado pela fragmentação e pela insegurança, a religião reaparece como espaço de pertencimento e identidade.
À luz dessas reflexões, as religiões de matriz africana se revelam não apenas como objeto, mas como sujeito filosófico. Elas encarnam dimensões que a filosofia ocidental por vezes negligenciou: a união entre corpo e espírito, a sacralidade da natureza, a centralidade do mito como narrativa de sabedoria, a força comunitária do rito, a memória ancestral como resistência e a espiritualidade como celebração da vida.
O terreiro, nesse sentido, é mais do que espaço ritual: é escola de filosofia vivida. Nele, ética e estética, razão e mito, comunidade e transcendência não estão separados, mas entrelaçados em um modo de vida que resiste ao esfacelamento contemporâneo. Frente à modernidade líquida, o axé se torna raiz; frente à intolerância, o terreiro se torna abrigo; frente à invisibilidade histórica, a ancestralidade se torna voz.
Do ponto de vista jurídico-político, a proteção dessas tradições não se resume a assegurar a liberdade de culto. Trata-se de um dever de justiça histórica, de reparação cultural e de reconhecimento epistêmico. Rawls nos lembra que a justiça exige equidade; Habermas, que a democracia exige diálogo; Boaventura, que a pluralidade exige justiça cognitiva. Todos esses princípios convergem na defesa do direito à diversidade religiosa, onde o reconhecimento das tradições africanas é condição para a realização de uma democracia plena.
Em síntese, pensar a religião filosoficamente hoje significa ir além do eurocentrismo, abrindo espaço para as filosofias que emergem do canto, da dança, da oralidade e da ancestralidade. Significa reconhecer que há filosofia no terreiro, assim como há ética na roda de atabaques e metafísica no transe dos orixás. A religião de matriz africana não é apenas uma prática espiritual: é uma forma de pensar, viver e resistir.
Assim, o que este artigo buscou evidenciar é que a filosofia da religião só se torna verdadeiramente universal quando se dispõe a ouvir e dialogar com essas tradições. O futuro do pensamento religioso — e talvez do próprio pensamento filosófico — passa pela capacidade de integrar a razão e o mito, a crítica e a ancestralidade, a universalidade e a pluralidade.
Pois, em última instância, proteger e valorizar as religiões de matriz africana é também proteger e valorizar a própria humanidade: sua memória, sua diversidade e sua incessante busca por sentido.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2010.
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BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília, 6 jan. 1989.
BRASIL. Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007. Institui o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Diário Oficial da União, Brasília, 28 dez. 2007.
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Tradução de Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. Vol. 1 e 2. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2002.
KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris, 2003. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org. Acesso em: 04 ago. 2025.
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Inventário Nacional de Referências Culturais: Patrimônio Imaterial Afro-brasileiro. Brasília: IPHAN, 2019.

Adriano Cabral
Dr. h. c. Luiz Adriano Santos Cabral (Adriano Cabral) é filósofo formado pela UCP Petrópolis; MBA em Administração Pública; Pós graduado em docência de Filosofia e Teologia; Primeiro secretário da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa da OAB 22° Subseção Magé/ Guapimirim... [+ informações de Adriano Cabral]
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|| Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews.
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