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O Natal e a renovação dos ciclos

Por: Pai Luiz Felipe Stevanim

26/12/2022 | 09:39


O Natal e a Páscoa são celebrações do Calendário Cristão. Não são festividades que se originaram no riquíssimo universo religioso afro-indígena-brasileiro. Contudo, como não se deixar envolver pelo espírito de comunhão e fraternidade que essas datas inspiram? O Natal é tempo em que a comunidade em que vivemos celebra a renovação da vida, o nascimento, o recomeço, os laços fraternais e o amor universal entre os seres — e a Umbanda, como religião que se alicerça em valores comunitários, também se alegra quando os humanos se abraçam.


Contudo, cada vez mais colonizado pelo individualismo típico de uma sociedade capitalista, o Natal tem deixado de ser sobre abraços e reencontros — e tornou-se a data de ilusões consumistas e de reforço das desigualdades. Converteu-se em um tempo em que tanto se conjuga o verbo “comprar” e se esquece o sentido original de renovação de ciclos e reafirmação de afetos. Diante deste dilema, como os saberes de terreiro cultivados pela Umbanda podem contribuir com o resgate do espírito comunitário desta celebração?


Há uma velha cantiga entoada por quilombolas e descendentes de ex-escravizados de origem bantu na região de Diamantina, em Minas Gerais, que revisita a narrativa natalina: “Galo já cantou, ê, ê / Cristo nasceu / Dia amanheceu / Galo já cantou”. Registrada pelo linguista Aires da Mata em seu livro “O negro e o garimpo em Minas Gerais”, de 1943, e imortalizada na voz de Tia Doca, no célebre disco “O canto dos escravos”, ao lado de Clementina de Jesus e Geraldo Filme, a canção é o anúncio do nascimento de uma criança pobre e refugiada na humildade de um curral — acontecimento simbólico revivido pela humanidade há dois milênios.


O galo que canta na madrugada é Exu que anuncia um novo dia. A história registra que, desde a Antiguidade, o Natal era época de “virada” do tempo, pois marcava a chegada do inverno (solstício de inverno) para povos diversos, como os romanos e os povos da Mesopotâmia. Para nós, na contemporaneidade, significa também a proximidade da virada do ano e nos convida a um ritual tanto íntimo quanto coletivo de renovação de nossas forças e de nossa fé para a “lua grande” (Ano Novo) que vai começar, no linguajar dos Caboclos de Umbanda.


Os povos de terreiro contam um Ìtàn muito conhecido em que Oxalá foi incumbido por Olodumare ou Olorum, o Deus Supremo, de criar o mundo (Àiyé). Munido com o saco da criação, o Senhor do Pano Branco saiu do Òrun, a morada celeste, sem cumprir com os compromissos rituais devidos a Exu, fundamentais antes de iniciar a viagem. Exu, que entorta o que está direito e endireita o que está torto, não podia perdoar tamanha ofensa e perturbou Oxalá com uma sede incontrolável pelo caminho, que o obrigou a furar o tronco de um dendezeiro com o seu cajado sagrado — de onde verteu um delicioso vinho de palma. Embriagado, Oxalá deixou-se adormecer na estrada e não cumpriu com a incumbência da Criação.


Quando Olorum recebeu de volta, das mãos de Exu, o saco da criação abandonado por Oxalá, entregou-o a Odudua, o outro filho do Supremo Criador — e assim a Terra se fez. Mas aqui reside o que é, para mim, a grande beleza deste Ìtán: Oxalá retorna ao palácio de Olodumare, pede perdão pela sua falha, é punido com a proibição de nunca mais se embriagar e recebe a nobre missão de criar os seres humanos, oferecendo-lhes o dom da vida.


Oxalá é aquele que não desiste. Teimoso, persistente, perseverante, é como cada um e cada uma de nós, que mesmo com nossos erros, ainda buscamos o caminho da virtude. Penso que este Ìtán, que conta a história da criação na cosmopercepção iorubá, é também uma lição importante sobre recomeços. O que fazer para renovar nosso ciclo pessoal e comunitário diante do novo tempo que se inicia? O que nos instiga a não desistir e a recomeçar?


Como a natureza nos ensina, o sol nunca deixa de renascer pela manhã. Que nosso ser também possa se reinventar e se renovar, ao som do galo que canta no romper da aurora. E como nos orientou nosso Pai, o Caboclo Sete Flechas, para a virada desta “lua”: que nosso maior presente seja um abraço.



Átila Nunes - AxéNews

Pai Luiz Felipe Stevanim

Luiz Felipe Stevanim é sacerdote de Umbanda e dirigente da Casa da Fraternidade Aldeia de Luz, terreiro fundado em 2017, atualmente situado no Rio de Janeiro. É autor do livro “Terreiro de Caboclo: A raiz indígena na Umbanda”, sob orientação do Caboclo Sete Flechas. Filho de Oxóssi e Oxum, busca vivenciar a religião como aprendizado comunitário e ancestral. [+ informações de Luiz Felipe Stevani]

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