Coleção Perseverança: Patrimônio, Reparação e as Lutas dos Povos de Terreiro
- WR Express
- 5 de ago.
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Por Ana Paula Miranda e Mariana Maiara Soares Silva

✅05/08/2025 | 07:20
Nos últimos anos, os debates sobre a valorização do patrimônio nacional, indígena e afro-brasileiro, estão cada vez mais presentes. Palavras como patrimonialização, tombamento e repatriação de artefatos – sagrados ou históricos – ganharam visibilidade, especialmente, por se tratar de objetos retirados violentamente de seus contextos originais durante os processos coloniais. Podemos citar, por exemplo, o retorno do Manto Tupinambá, que esteve por mais de trezentos anos na Dinamarca e foi devolvido ao Brasil em 2024.
A patrimonialização é o modo pelo qual o Estado brasileiro transforma bens materiais (edifícios, objetos, acervos) ou imateriais (práticas, saberes, festas, etc.) em patrimônio, a partir de uma série de ações administrativas, simbólicas e sociais, que envolvem a indicação oficial de um bem cultural, o que implica na valorização e reconhecimento coletivo desse bem.
O tombamento é o nome que se dá a um conjunto de procedimentos, administrativos e jurídicos, por meio do qual o Estado reconhece oficialmente e protege esse bem cultural, em função do seu valor histórico, social ou artístico. Após essa etapa, ocorre a definição de regras para sua preservação. Quando se trata de um bem material espera-se, assim, impedir sua destruição ou descaracterização, o que implica numa responsabilidade em sua preservação. Quando se refere a um bem imaterial as implicações são de outra ordem.
Essas ações integram um processo de reparação histórica e destacam o protagonismo das lideranças afrorreligiosas na luta pelo reconhecimento e preservação do patrimônio afro-brasileiro.
Terreiros tombados no Brasil
A mobilização pelo tombamento do Terreiro da Casa Branca surgiu como reação à tentativa de instalação de um posto de gasolina no local, em 1976, revelando a pressão da especulação imobiliária sobre espaços sagrados, tensão que segue afligindo os religiosos de matriz africana.
Desde 1986, o Brasil começou a incluir terreiros de matriz afro-brasileira como bens culturais protegidos. Atualmente há 11 terreiros tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), além de outros protegidos em nível estadual

A relevância do tombamento para os povos de terreiro está associada à garantia e preservação, física e simbólica, dos espaços sagrados e dos saberes que ali são transmitidos, bem como ao reconhecimento do papel dos terreiros como territórios de resistência cultural, luta e identidade negra.
O reconhecimento institucional de alguns terreiros como patrimônio nacional garante visibilidade e direitos, mas não dá conta do universo que segue sem proteção. Temos ainda o desafio da administração dos terreiros e patrimônios tombados, o que exige práticas de gestão participativas e sensíveis à natureza viva e dinâmica desses espaços, como ilustra o caso da Coleção Perseverança, em Alagoas.
O Quebra de Xangô e a Coleção Perseverança
O Quebra de Xangô é um episódio ainda pouco conhecido na história dos povos de terreiro no Brasil, que ocorreu em fevereiro de 1912, protagonizado por uma milícia paramilitar com cerca de 500 homens – a Liga dos Republicanos Combatentes.
Este evento foi o mais violento contra terreiros em Alagoas envolveu a destruição de casas religiosas, assassinatos de lideranças e a exposição de objetos sagrados como troféus, depois tratados como bugigangas até serem resgatados, em 1950, pela elite intelectual alagoana e transferidos para o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), como forma de evitar que fossem levados para um museu nos Estados Unidos.

Há várias décadas o movimento afrorreligioso alagoano luta pelo reconhecimento, por meio do tombamento, de um patrimônio material que representa não apenas objetos sagrados, mas também a presença negra e um modo de vida baseado na crença nos orixás. Chamada de Coleção Perseverança, o acervo que está no IHGAL é composto atualmente por 211 objetos.
A reivindicação não se limitava ao pedido de tombamento das peças, mas questiona a forma como foram armazenadas e catalogadas pelo Instituto, com classificações equivocadas que não dão conta das tradições afro-alagoanas, nem estão afinadas com as narrativas anti-hegemônicas.

A luta pelo tombamento das peças do Quebra de Xangô integra um movimento mais amplo de reconhecimento no campo das políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro.
A estratégia dos religiosos alagoanos para conquistar o tombamento da Coleção Perseverança uniu mobilização pública e pressão institucional, especialmente por meio das celebrações públicas do evento "Xangô Rezado Alto", realizado desde 2007. Os povos de terreiro alagoanos conquistaram assim visibilidade, apoios institucionais (universidades, o Instituto do Negro de Alagoas, a OAB e o Ministério Público Federal) e o pedido oficial de perdão do governo.
O pedido de tombamento junto ao IPHAN reconhecia não apenas o valor material da coleção, mas também seu significado histórico e artístico, requerendo sua inscrição nos três livros do tombo: das Belas Artes, Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. O processo durou mais de dez anos e só foi retomado, em 2022, quando foi criado um grupo de trabalho com lideranças de terreiros, universidades, o movimento negro e outras instituições de Alagoas, que retomaram as tratativas com o IPHAN.
Em novembro de 2024, a Coleção Perseverança foi tombada pelo IPHAN, reconhecendo sua importância histórica e espiritual; para os povos de terreiro, o gesto simboliza uma reparação e reafirma a luta contínua por memória, dignidade e valorização de seus modos de vida.
Fica agora o desafio para que seja garantido aos povos de terreiro a gestão participativa e o poder de decisão sobre o tratamento, catalogação e apresentação da Coleção Perseverança, além de assegurar o acesso público.
A reparação histórica promovida a partir dos tombamentos é fruto de mobilização e organização coletiva, e não de concessão estatal. Embora o tombamento possa ser considerado um avanço – ao assegurar o compromisso estatal em reconhecer essas tradições, ele não elimina os desafios impostos pelo controle institucional e pelos persistentes mecanismos do racismo religioso.
Os povos de terreiro seguem protagonistas na luta por memória e reparação, articulando políticas públicas de reconhecimento de seus patrimônios sagrados, como a Coleção Perseverança e o acervo Nosso Sagrado, no Rio de Janeiro.
Artigo escrito em colaboração com Mariana Maiara Soares Silva.

Ana Paula Mendes de Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.
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