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Coleção Perseverança: Patrimônio, Reparação e as Lutas dos Povos de Terreiro

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    WR Express
  • 5 de ago.
  • 4 min de leitura

Por Ana Paula Miranda e Mariana Maiara Soares Silva

Figura Abebés associados aos orixás femininos Oxum e Iemanjá. Foto: Mariana Maiara, 2023.
Figura Abebés associados aos orixás femininos Oxum e Iemanjá. Foto: Mariana Maiara, 2023.

05/08/2025 | 07:20


Nos últimos anos, os debates sobre a valorização do patrimônio nacional, indígena e afro-brasileiro, estão cada vez mais presentes. Palavras como patrimonialização, tombamento e repatriação de artefatos – sagrados ou históricos – ganharam visibilidade, especialmente, por se tratar de objetos retirados violentamente de seus contextos originais durante os processos coloniais. Podemos citar, por exemplo, o retorno do Manto Tupinambá, que esteve por mais de trezentos anos na Dinamarca e foi devolvido ao Brasil em 2024.


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A patrimonialização é o modo pelo qual o Estado brasileiro transforma bens materiais (edifícios, objetos, acervos) ou imateriais (práticas, saberes, festas, etc.) em patrimônio, a partir de uma série de ações administrativas, simbólicas e sociais, que envolvem a indicação oficial de um bem cultural, o que implica na valorização e reconhecimento coletivo desse bem.


O tombamento é o nome que se dá a um conjunto de procedimentos, administrativos e jurídicos, por meio do qual o Estado reconhece oficialmente e protege esse bem cultural, em função do seu valor histórico, social ou artístico. Após essa etapa, ocorre a definição de regras para sua preservação. Quando se trata de um bem material espera-se, assim, impedir sua destruição ou descaracterização, o que implica numa responsabilidade em sua preservação. Quando se refere a um bem imaterial as implicações são de outra ordem.


Essas ações integram um processo de reparação histórica e destacam o protagonismo das lideranças afrorreligiosas na luta pelo reconhecimento e preservação do patrimônio afro-brasileiro.


Terreiros tombados no Brasil


A mobilização pelo tombamento do Terreiro da Casa Branca surgiu como reação à tentativa de instalação de um posto de gasolina no local, em 1976, revelando a pressão da especulação imobiliária sobre espaços sagrados, tensão que segue afligindo os religiosos de matriz africana.


Desde 1986, o Brasil começou a incluir terreiros de matriz afro-brasileira como bens culturais protegidos. Atualmente há 11 terreiros tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), além de outros protegidos em nível estadual


Figura Terreiros tombados pelo IPHAN (1986-2018)
Figura Terreiros tombados pelo IPHAN (1986-2018)

A relevância do tombamento para os povos de terreiro está associada à garantia e preservação, física e simbólica, dos espaços sagrados e dos saberes que ali são transmitidos, bem como ao reconhecimento do papel dos terreiros como territórios de resistência cultural, luta e identidade negra.


O reconhecimento institucional de alguns terreiros como patrimônio nacional garante visibilidade e direitos, mas não dá conta do universo que segue sem proteção. Temos ainda o desafio da administração dos terreiros e patrimônios tombados, o que exige práticas de gestão participativas e sensíveis à natureza viva e dinâmica desses espaços, como ilustra o caso da Coleção Perseverança, em Alagoas.


O Quebra de Xangô e a Coleção Perseverança


O Quebra de Xangô é um episódio ainda pouco conhecido na história dos povos de terreiro no Brasil, que ocorreu em fevereiro de 1912, protagonizado por uma milícia paramilitar com cerca de 500 homens – a Liga dos Republicanos Combatentes.


Este evento foi o mais violento contra terreiros em Alagoas envolveu a destruição de casas religiosas, assassinatos de lideranças e a exposição de objetos sagrados como troféus, depois tratados como bugigangas até serem resgatados, em 1950, pela elite intelectual alagoana e transferidos para o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), como forma de evitar que fossem levados para um museu nos Estados Unidos.


Figura Sala do IHGAL que abriga peças do “Quebra de Xangô”. Ao fundo, encontra-se uma pintura retratando Dom Pedro II. Foto: Mariana Maiara, 2023.
Figura Sala do IHGAL que abriga peças do “Quebra de Xangô”. Ao fundo, encontra-se uma pintura retratando Dom Pedro II. Foto: Mariana Maiara, 2023.

Há várias décadas o movimento afrorreligioso alagoano luta pelo reconhecimento, por meio do tombamento, de um patrimônio material que representa não apenas objetos sagrados, mas também a presença negra e um modo de vida baseado na crença nos orixás. Chamada de Coleção Perseverança, o acervo que está no IHGAL é composto atualmente por 211 objetos.


A reivindicação não se limitava ao pedido de tombamento das peças, mas questiona a forma como foram armazenadas e catalogadas pelo Instituto, com classificações equivocadas que não dão conta das tradições afro-alagoanas, nem estão afinadas com as narrativas anti-hegemônicas.


Figura Abebés associados aos orixás femininos Oxum e Iemanjá. Foto: Mariana Maiara, 2023.
Figura Abebés associados aos orixás femininos Oxum e Iemanjá. Foto: Mariana Maiara, 2023.

A luta pelo tombamento das peças do Quebra de Xangô integra um movimento mais amplo de reconhecimento no campo das políticas de preservação do patrimônio cultural brasileiro.


A estratégia dos religiosos alagoanos para conquistar o tombamento da Coleção Perseverança uniu mobilização pública e pressão institucional, especialmente por meio das celebrações públicas do evento "Xangô Rezado Alto", realizado desde 2007. Os povos de terreiro alagoanos conquistaram assim visibilidade, apoios institucionais (universidades, o Instituto do Negro de Alagoas, a OAB e o Ministério Público Federal) e o pedido oficial de perdão do governo.


O pedido de tombamento junto ao IPHAN reconhecia não apenas o valor material da coleção, mas também seu significado histórico e artístico, requerendo sua inscrição nos três livros do tombo: das Belas Artes, Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. O processo durou mais de dez anos e só foi retomado, em 2022, quando foi criado um grupo de trabalho com lideranças de terreiros, universidades, o movimento negro e outras instituições de Alagoas, que retomaram as tratativas com o IPHAN.


Em novembro de 2024, a Coleção Perseverança foi tombada pelo IPHAN, reconhecendo sua importância histórica e espiritual; para os povos de terreiro, o gesto simboliza uma reparação e reafirma a luta contínua por memória, dignidade e valorização de seus modos de vida.


Fica agora o desafio para que seja garantido aos povos de terreiro a gestão participativa e o poder de decisão sobre o tratamento, catalogação e apresentação da Coleção Perseverança, além de assegurar o acesso público.


A reparação histórica promovida a partir dos tombamentos é fruto de mobilização e organização coletiva, e não de concessão estatal. Embora o tombamento possa ser considerado um avanço – ao assegurar o compromisso estatal em reconhecer essas tradições, ele não elimina os desafios impostos pelo controle institucional e pelos persistentes mecanismos do racismo religioso.


Os povos de terreiro seguem protagonistas na luta por memória e reparação, articulando políticas públicas de reconhecimento de seus patrimônios sagrados, como a Coleção Perseverança e o acervo Nosso Sagrado, no Rio de Janeiro.



  • Artigo escrito em colaboração com Mariana Maiara Soares Silva.




Joana Bahia - AxéNews

Ana Paula Mendes de Miranda

Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.





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