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Casamento na Umbanda: liberdade, não (auto)anulação

Por: Ademir Barbosa Junior

28/03/2023 | 14:03


Sacramento é uma ritualística especial, geralmente um rito de passagem. A palavra, traduzida livremente como “sinal”, vem do latim e significa “sagrado” e seu antônimo “amaldiçoado (a)”[1] . No caso específico do matrimônio, o consenso entre as religiões é de que se trata de um sinal diante da comunidade de um casal que se ama e deseja viver junto. Contudo, em que o matrimônio na Umbanda difere daquele da maioria das religiões? Quais as suas particularidades.




Como na maioria das religiões, o matrimônio na Umbanda também é um acontecimento social. Entretanto, não a ponto de obscurecer o próprio motivo da liturgia e sua essência, reduzindo-a a um evento em que a maioria das pessoas pensa em comer, beber e exibir roupas novas. O caráter de integração comunitária nas cerimônias de matrimônio na Umbanda se dá porque geralmente é realizada com a família de Axé (comunidade do terreiro) e suas extensões. Todos, de uma forma ou de outra, são parentes espirituais. Além disso, na dinâmica da própria cerimônia quase sempre todos estão trajados com suas roupas litúrgicas (uniforme, “roupa branca”, guias etc.), e não apenas quem conduz a cerimônia (sacerdote ou sacerdotisa).


Na condução da celebração, não há um ritual único. Conforme a orientação do segmento umbandista e do terreiro, o (a) celebrante pode ou não estar incorporado (a), assim como os próprios noivos. Não existe, portanto, uma uniformidade ritualística, aliás, uma das características mais marcantes e conhecidas da religião de Umbanda.


Outro aspecto, ainda pouco usual nos matrimônios da maioria das religiões, é a inclusão de gêneros. Não existe no casamento umbandista o privilégio da heteronormatividade. Vale lembrar: as religiões tradicionais de terreiro sempre funcionaram como portos seguros para os diversos segmentos historicamente marginalizados ou excluídos, notadamente a comunidade lgbtqia+ e as popularmente chamadas “segundas uniões ”[2].

Nesse sentido, como a Umbanda encara a indissolubilidade do matrimônio? Se o defendesse a todo e qualquer custo, sem considerar o contexto de cada relacionamento, a Umbanda


a) Criaria um dogma, o que é incompatível com sua concepção, seu histórico, sua teologia (núcleo comum e desdobramentos) e sua práxis.

b) Desrespeitaria o livre-arbítrio.

c) Desrespeitaria contextos de violência, subjugação e privação de várias formas de liberdade.

d) Desconsideraria a importância das experiências na vivência de histórias individuais e coletivas, sendo as relações afetivas terreno fértil para essas vivências.


1.“Sacramentum”, por sua vez, é a tradução para o grego “mysterion” (doutrina secreta).

2.Nos meios religiosos, o termo é comumente empregado quando ao menos um dos cônjuges é egresso de outro (s) casamentos, sem julgamentos. O senso comum, contudo, ainda que inconsciente, costuma considerar a “primeira união” como a legítima (e única), haja vista o discurso predominante em muitos segmentos sociais mais conservadores e a manutenção da indissolubilidade do matrimônio, a todo e qualquer custo, em muitas religiões.



De modo geral, a Espiritualidade assim como as lideranças religiosas aconselham tanto a reflexão madura para o casamento quanto para a sua dissolução. Nesse sentido, existem ritualísticas próprias para a conexão energética dos envolvidos, bem como para sua dissolução. Insistir numa relação infeliz, independentemente das razões, que variam sobremaneira, seria verdadeiro ato de amarração, erroneamente atribuído as religiões tradicionais de terreiro. Quem, em sã consciência, desejaria isso para si e para outrem?


Se o matrimônio umbandista é um ato público de união, o mesmo não visa a apenas legitimar a relação sexual ou promover a reprodução. Trata-se de bênção e reconhecimento comunitário daquela união, contudo não existe a noção de que apenas após o matrimônio uma relação sexual ou a geração e o nascimento de uma criança são legítimos. A legitimidade da relação sexual decorre do consentimento consciente, do respeito mútuo. Já a concepção e o nascimento de uma criança também são legítimos pelas mesmas razões e independentemente de qualquer sacramento, o qual, aliás, no caso do matrimônio umbandista, não abre a fabricação “legítima” e sistemática de filhos biológicos.


Se a Umbanda, assim como as demais religiões tradicionais de terreiro, sempre esteve na vanguarda de casais não-heteronormativos, o mesmo se dá para outras formas de parceria. Ainda que alguns sacerdotes e sacerdotisas possam individualmente se recusar, a Umbanda não costuma negar a bênção matrimonial a casais que mantenham relacionamentos abertos e/ou vivenciem o chamado poliamor[3], uma vez que reconhece tanto o livre-arbítrio quanto a multiplicidade de configurações de relacionamentos. Por esses motivos, é cada vez mais comum, embora ainda haja poucas ocorrências, a bênção matrimonial concedida na Umbanda aos chamados trisais.


3.O conceito de poliamor, mais que o de relacionamento aberto, pressupõe o franco diálogo entre os envolvidos. Enquanto o relacionamento aberto abarca envolvimentos aleatórios e muitas vezes secretos com outros (as) parceiros (as), o poliamor, em linhas gerais, estabelece formas de relações compartilhadas, portanto, sempre às claras. De qualquer forma, ambos os modelos diferem, e muito, do que se chama popularmente de traição. Não se aprofunda aqui o tema, como a adoção do relacionamento aberto apenas para agradar um (uma) dos parceiros (as), o que se torna mais difícil nos vários modelos de poliamor.



A reflexão madura e responsável sobre a diversidade de gêneros, configurações de parcerias e outros precisa ser dialógica e horizontal, não verticalizada a partir de sacerdotes e sacerdotisas. Mesmo as religiões constituídas mais conservadoras e de predominância (e mesmo imposição) social reconhecem que aqueles que se casam são os verdadeiros oficiantes do sacramento, sendo o (a) ministro (a) religioso (a) aquele (a) que concede a bênção. Tal protagonismo na Umbanda, em reflexões aprofundadas e amplificadas, além de não se verticalizar, também não se pode fechar em apenas um ou outro modelo de parceria, sob o risco de se ferir o livre-arbítrio, o respeito à diversidade e legitimar exclusões e exclusivismos, bem como a submissão a modelos dominantes inquestionáveis a respeito dos quais todo e qualquer questionamento é tachado de influência espiritual deletéria ou ataques de vampiros sexuais como íncubos e súcubos.


Além disso, o pensamento ocidental eurocêntrico predominante configurou “mono” como evoluído e “poli” como retrógrado, haja vista, dentre outras, a dualidade monogamia/poligamia e monoteísmo/politeísmo, chancelada pelo Espiritismo[4] , fortemente marcado pelo Positivismo e de grande influência no meio umbandista, inclusive como uma de suas matrizes.


O sacramento, enquanto sinal e bênção, pode ser representado por duas hélices que dançam, à imagem do DNA ou de como a cultura milenar oriental ensina sobre os canais energéticos Ida e Sushumna. Uma hélice é o humano, o encarnado, o físico. A outra, o divino, o espiritual, o psíquico. Ambas se complementam, não há verticalização[5] , até mesmo porque o Axé é compreendido como energia que circula, não que se estende em queda de cima abaixo. Verticalização leva a distanciamento e vertigem, portanto afastamento do cotidiano e dificuldade de se vislumbrar a diversidade. Tem-se o que chamo de esquizofrenia espiritual, quando a realidade cotidiana não comunga com a realidade litúrgica e vice-versa. O sagrado é isolado do cotidiano e o mesmo deixa de ser sacralizado a cada vivência, positiva ou negativa, amorosa ou dolorosa.


4.O tema é desenvolvido notadamente no chamado pentateuco kardequiano, a obra básica do Espiritismo, em livros e passagens diversas, sem considerar que, se há poligamias opressoras, não são mais oxigenadas certas monogamias.

5.Mesmo que o sacramento do matrimônio seja encarado por meio da verticalização, as bênçãos desceriam sobre os noivos, e não cairiam como uma bomba ou um peso sobre suas cabeças, costas, suas vidas.



Na maioria dos terreiros de Umbanda em que a bênção matrimonial é concedida com incorporação, sacerdotes e sacerdotisas costumam trabalhar com a Direita. Ainda que de forma inconsciente, Exus, Pombogiras e outras Entidades que, embora trabalhem na Direita e na Esquerda, numa determinada casa se manifestem mais nesta última, continuam confinados a papéis secundários, sob diversas alegações, notadamente estas:

1. Os sacramentos costumam ser administrados pela chefia espiritual da casa, daí a precedência de Caboclos, Pretos-velhos etc.

2. A Esquerda não é responsável direta pela coroa de um médium, e sim por suas costas ou pés.[6]


Meditemos a respeito:

1. Embora haja essa precedência, também, por questões de afinidade ou energéticas, muitas vezes o lugar é cedido a outras Entidades que não o (a) chefe primeiro (a) da casa. Por que tal lugar não pode ser cedido a Exu e Pombogira, ainda mais no caso de um matrimônio, em que a dimensão corpo-mente-espírito[7] é tão evidente[8] ?

2. O raciocínio vale para ações diretamente ligadas ao Ori, como o batismo, por exemplo. Contudo, no caso do matrimônio, sacramento por cuja própria natureza, a corporeidade, a psique e a espiritualidade não apenas individual, mas dos (as) parceiros (as) estão, mais do que nunca, potencializados e conectados. Ademais, a Esquerda pode não cuidar diretamente da coroa mediúnica de alguém, papel preponderante de Orixás e/ou Guias, mas, além de cuidar indiretamente, como as demais Entidades, Exus e Pombogiras por vezes também assumem a mentoria direta na vida de um (a) médium.


6. “Costas” ou “pés” são tomados aqui de acordo com o vocabulário de alguns terreiros, como complementação a Ori, bem como símbolos de base e proteção.

7.Mesmo na Umbanda, religião em que o holismo é uma das características marcantes, por vezes o corpo é colocado como terceira opção, enquanto o espírito ocupa a primeira e a mente, a segunda. Quando essa fragmentação ocorre, compromete-se a noção e a vivência do holismo, o qual, se admite que um elemento prepondere em determinada circunstância, não comporta verticalizações.

8. A primeira bênção matrimonial na Umbanda dada por um Exu a que eu assisti foi em outubro de 2019, no Vale dos Orixás (Nazaré Paulista - SP). Tratava-se de um casal de mulheres, que morava junto havia tempo, ambas umbandistas. O Exu: Seu Sete Encruzilhadas (médium: Pai Joãozinho Galerani - Terreiro da Vó Benedita - Campinas - SP). Tudo ocorreu com muita simplicidade, na parte final de um trabalho mediúnico onde houve diversas ritualísticas e passagens de Linhas, sendo a Esquerda a última a se manifestar. Seu Sete Encruzilhadas, no Terreiro da Vó Benedita, tem papel de destaque nas preleções, nos atendimentos durante as giras, na denominação da curimba etc.



Alguns sacerdotes e sacerdotisas de Umbanda sustentam que a bênção matrimonial deva ser concedida apenas se um dos cônjuges for umbandista ou participante comprometido com o terreiro. Certamente essa concepção reproduz o pensamento de religiões mais tradicionais que também exigem que ao menos um dos cônjuges seja adepto e tenha recebido outros sacramentos preliminares, em comunhão com a comunidade, além de buscar a ressignificação do sacramento do matrimônio nessas religiões, onde se vê praticamente reduzido a um evento social na maioria dos casos, desfocado, portanto de seus traços espirituais, religiosos, teológicos e litúrgicos. Contudo, a Umbanda, por não ser proselitista e estar de portas abertas a segmentos historicamente marginalizados ou excluídos, seria coerente com sua espiritualidade, sua teologia e sua identidade histórica ao restringir a bênção matrimonial a casos em que ao menos um dos cônjuges seja da religião?


Quanto ao matrimônio religioso de efeito civil na Umbanda, embora seja prático para os cônjuges, continua restrito apenas a algumas formatações, uma vez que reflete a legislação vigente em cada país e/ou unidade federativa, conforme o caso.





Ademir Barbosa Junior - AxéNews

Ademir Barbosa Junior

Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]

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