Candomblé: tradição e modernidade. É possível juntar sem misturar?
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Por: Mãe Jaci

✅ 08/05/2025 | 08:41
No terreiro, a poeira do atabaque sobe como um chamado antigo. O chão de terra batida, o cheiro do dendê e a força dos cânticos são testemunhas de uma tradição que atravessa séculos. Mas, e quando o novo tenta se sobrepor ao antigo? Quando o ritmo do tambor se mistura ao som digital, quando a oralidade dos mais velhos disputa espaço com os tutoriais da internet?
Os conflitos de gerações dentro do Candomblé não são novidade. Toda tradição enfrenta o desafio de se renovar sem se perder, de caminhar sem apagar suas pegadas. Mas a modernidade tem pressa. Há quem diga que facilitar é o mesmo que evoluir, que adaptar é o mesmo que melhorar. No entanto, nem toda mudança é progresso, assim como nem toda tradição é resistência cega.
Os antigos nos ensinam que há um tempo certo para cada aprendizado, que a iniciação não é apenas um rito, mas um percurso de amadurecimento espiritual e social. Mas e quando a modernidade exige atalhos? Quando o sagrado é transformado em produto de consumo rápido, quando a estética se sobrepõe ao fundamento?
Há algo de perigoso na busca incessante por novidades que não respeitam as raízes. No Candomblé, não se trata apenas de preservar por preservar, mas de manter vivo o que sustenta a religião: o axé que não pode ser digitalizado, o saber que não pode ser reduzido a posts de redes sociais. Modernizar não pode significar perder o fio da história, abandonar a base que sustenta toda a estrutura.
Respeitar a tradição, às vezes, significa ir contra os costumes temporais. Significa não ceder à pressão de transformar tudo em espetáculo, de deixar a ancestralidade ser moldada pelas tendências passageiras. Não se trata de recusar a evolução, mas de questionar: até que ponto a mudança fortalece e até que ponto ela nos afasta da essência?
O Candomblé sobreviveu a perseguições, adaptações forçadas e tentativas de apagamento. Se chegou até aqui, é porque soube se reinventar sem se desfazer. Que possamos continuar esse caminho com consciência, sem pressa, respeitando o tempo das folhas, o silêncio dos mais velhos e a voz dos que vieram antes de nós.
E dentro dessa tradição, é impossível ignorar o lugar das mulheres. O Candomblé é, em sua essência, uma religião matriarcal. O corpo feminino é central: ele dança para os orixás, gesta a continuidade da tradição, acolhe e ensina. São as fêmeas que guiam os caminhos espirituais, que sustentam a energia do terreiro, que carregam em seus corpos o sagrado. Mas, mesmo dentro dessa estrutura, o machismo insiste em se infiltrar.
A modernidade, que poderia ser aliada, muitas vezes reforça essas desigualdades, trazendo discursos externos que enfraquecem a autonomia feminina dentro da religião.
É urgente resgatar e reafirmar o papel central das mulheres no Candomblé. Nós somos guardiãs do conhecimento, as detentoras do axé, as responsáveis por manter o equilíbrio entre o passado e o futuro. Sem a feminilidade, a tradição se perde, o sagrado se esvazia. Que a tal modernidade sirva para amplificar nossas vozes e não para silenciar-nos em nossos ventres, constrangendo-nos por sermos quem somos.
Nas próximas colunas, eu continuo refletindo um pouco mais sobre as ameaças ao matriarcado e os desafios do Candomblé para continuar existindo conectado à sua essência.
Não perca!

Mãe Jaci
Jacineide Soares é Mãe Jaci, Sacerdotisa do Candomblé, formada em Gestão de Recursos Humanos pela Unigranrio. Empreendedora Cultural, escritora, palestrante, fundadora do Coletivo Colo de Mãe Preta e do CHAO - Centro Humanitário Abebé de Ouro. Presidente estadual do MOVIDADE - Movimento Democrático Afrodescendente pela Igualdade e equidade racial, e dirigente do Terreiro Casa do Abebé de Ouro, no município de Maricá, RJ.
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Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews. |
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