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As Crianças, Vunji e a Cura!

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • 26 de set.
  • 4 min de leitura

Por: Pai Caio


Foto: Reprodução

26/09/2025 | 10:42


A festa das Crianças na Umbanda, celebrada principalmente em setembro, transcende a simples homenagem à pureza e à alegria infantil. Ela se entrelaça com profundas raízes ancestrais, especialmente com a tradição Bantu, e carrega consigo uma complexa dinâmica de cura e renovação, muitas vezes relacionada ao ciclo das estações e à saúde coletiva.


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O Elo Ancestral: Das Crianças aos Vunji

Os espíritos das Crianças na Umbanda, conhecidos como Erês, encontram um notável paralelo com os Vunji (ou Vunjis) da tradição Bantu, especialmente no Candomblé de Nação Angola. Os Vunji são os nkisis (divindades) ou espíritos infantis que representam a continuidade da vida, a doçura e, crucialmente, a capacidade de manipular energias de cura com uma simplicidade e potência singulares.


Essa associação não é casual. A Umbanda, como religião sincrética brasileira, absorveu e ressignificou elementos de diversas matrizes africanas. A figura da Criança, na sua alegria desarmada e na sua aparente fragilidade, é vista como um canal direto para a energia vital.


Cura e Mistério: a ligação com a palha e o inverno

A dimensão de cura das Crianças, e por extensão dos Vunji, torna-se ainda mais evidente quando observamos a conexão com o universo dos Nkises ligados às palhas e à saúde, como Kavungo(no Ketu, associado a Omolu/Obaluayê).


Na Umbanda e nas tradições Bantu, a palha é um elemento de grande poder ritualístico. O nkiseda palha, frequentemente associado à kukuana (doença ou, em sentido amplo, ao mistério dadoença e da cura) e às moléstias contagiosas, é quem detém o poder sobre a peste e a saúde. O uso da palha e o mistério da doença e da cura por Kavungo é um tema recorrente.


Embora as Vunji e Kavungo sejam divindades distintas, elas atuam em um domínio energético complementar. Os Vunji, por estarem ligados à inocência e ao limiar entre a vida e a morte (o futuro e o passado), são frequentemente convocados para trabalhos de limpeza e descarrego. Sua força, suave e penetrante, é vista como ideal para desfazer as "miasmas" e energias estagnadas que causam doenças, funcionando como um alívio após o período mais pesado, regido pela energia "adulta" e severa de Kavungo.


Coincidência sazonal: o fim do inverno e a renovação

Um ponto de análise sociológica e cultural que surge, muitas vezes velado como "coincidência", é a associação entre o calendário das festas de Crianças e o ciclo natural das estações no Brasil.


A festa principal de Crianças (27 de setembro) marca o final do inverno e o início da primavera. O inverno, com seu clima seco e frio em grande parte do país, é historicamente o período de maior incidência de doenças endêmicas e epidemias respiratórias (gripe, resfriados, alergias, etc.). As longas e secas estiagens aumentam a poeira, poluentes e a propagação de patógenos.


É justamente quando o período de maior risco de doenças está terminando que a Umbanda celebra a energia da renovação, da alegria e da cura leve das Crianças.


O Inverno da Transformação e Desafios: o período de maior recolhimento e adoecimento, em que a energia de Kavungo/Omolu é mais sentida na necessidade de quarentena, cuidado e "palha" protetora.


A Primavera da Cura: O final de setembro e o mês de outubro (festa de Cosme e Damião) marcam o retorno da umidade, o florescer, a quebra do frio e, simbolicamente, a chegada da alegria e da vitalidade das Crianças, que vêm "varrer" as doenças e tristezas do inverno, abrindo caminho para o novo ciclo.


Essa "coincidência disfarçada" reflete uma profunda sabedoria ancestral: a de alinhar os rituais de cura e limpeza espiritual (Crianças/Vunji) com os ciclos naturais de transição climática (inverno-primavera), oferecendo à comunidade não apenas o conforto da fé, mas um reforço energético e moral no momento em que a natureza também se prepara para a renovação da vida. A festa das Crianças, portanto, é mais do que doces; é um potente trabalho de cura coletiva que anuncia a esperança e a saúde da próxima estação.


Não é à toa a sabedoria dos nossos mais velhos, ao serem forçados a associar suas divindades a santos da igreja, que por vezes se confundiu com o próprio Estado, encontraram na dimensão de Cosme e Damião o paralelo perfeito entre irmãos e médicos, em total diálogo com as conexões ancestrais, históricas e sociais já estabelecidas anteriormente na África e ressignificadas no Brasil. Sincretismo esse que, em diferentes momentos, funcionou como medida protetiva contra a violência, seja do Brasil imperial, República Nova ou ditadura militar. Afinal, o sincretismo religioso não foi fruto do romance construído das três raças, mas sim tecnologia ancestral de sobrevivência do povo preto e seus descendentes.


Que a doçura das Crianças inunde sua vida de alegrias, conquistas e vitórias.

Salve Cosme e Damião,

Oni Ibeijada,

Kiwa Vunji,

Ngunzu!




Bàbé Ifálóba Ifálósèyí - AxéNews

Pai Caio

Caio Bayma nasceu na Baixada Fluminense, Nilópolis, foi morar no Morro dos Macacos por conta da proximidade com o trabalho, faculdade e atuação no movimento social, hoje reside no centro do Rio de Janeiro. Graduando em Matemática, integra a equipe do Observatório Adolescente (OPPA /UERJ) no eixo de religiosidade e atuou como primeiro extensionista na Superintendência de Saberes Tradicionais da UFRJ.   [+ informações de Pai Caio]


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Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews.


 
 
 

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