Agosto, mês do desgosto
- WR Express
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Por: Iya Paula de Odé

19/08/2025 | 09:04
Segundo informações da IA , a expressão agosto, mês do desgosto vem de uma ideia portuguesa no século XVI na época das grandes navegações. Onde os homens partiam para as expedições marítimas e ficavam meses no mar, impedindo assim que as recém esposas pudessem desfrutar plenamente da sua lua de mel e ainda corria o risco de se tornarem viúvas precocemente. Já as namoradas dos navegantes, nunca marcavam os casamentos para agosto justamente por ser o mês que eles partiam. Essa cronologia histórica portuguesa passa a ser uma crença que ficou no imaginário das pessoas aqui no Brasil até os dias de hoje.
Para nós, povos de religião de matriz africana, agosto é o mês do silêncio. Atotô! Mês onde todos deveríamos silenciar , não só para saudar e reverenciar o Rei Dono da Terra , Obaluayê, mas também para nos ouvir.
São tantos ruídos, internos e externos que dificilmente nós ouvimos de fato. Quando foi a última vez que você ouviu no silêncio das matas, no silêncio da noite, no silêncio da sua cabeça, no silêncio do seu coração? É no silêncio que podemos distinguir todos os ruídos. Tudo que nos atravessa, seja na mente, seja na alma ou no coração.
Vivemos num mundo onde tudo é veloz. Essa velocidade externa, também reflete em nós, nos obrigando a sermos rápidos o suficiente para acompanhar a “evolução” do mundo. Será que com tanta rapidez que a tecnologia nos oferece, conseguimos nos ouvir? Evoluímos nas entregas, mas retrocedemos naquilo que podemos entregar para nós mesmos e para aqueles que estão à nossa volta. Já não temos mais tempo de brincar com os filhos, chamegar nossos (as) companheiros (as). Corremos nas esteiras das academias com a mente em outro lugar, já pensando no que faremos quando sairmos dali. Muitas vezes estamos em silêncio, mas nosso peito quer explodir, a nossa mente tá gritando mas não podemos de fato gritar pra fora, só pra dentro mesmo. Às vezes a gritaria é composta de tantas vozes, que a gente não entende nada, só sobram os gritos mesmo. Atotô! Silêncio!
Silêncio! O senhor da varíola quer caminhar sobre a terra. A coroa feita de longas palhas escondem aquilo que ninguém quer ver, as feridas abertas. Mas é sabido que debaixo daquelas palhas há feridas abertas. Nós, assim como Obaluayê, escondemos as nossas feridas abertas. Não como ele esconde, com palhas, mas com sorrisos largos, gargalhadas exageradas ou tentando ajudar alguém, trabalhando até não ter tempo para nada, só chegar em casa e dormir ou ouvindo as lamentações, as insatisfações, os traumas do outro para que não tenhamos tempo para ouvir os nossos traumas, os nossos gemidos.
Agosto, mês de Obaluayê e sua família: Nanã. Oxumarê, Ossayn e Ewá. Obaluaê, aquele que ofertamos a sua iguaria preferida, deburú (pipoca). Um mais velho me contou o significado da palavra deburú. Deburú é o processo em que o milho passa para se transformar em pipoca. Quando o milho se torna pipoca ele passa a ser chamado de gugurú. Dito isso, deixo aqui um itan sobre a relação que há entre Obaluaye e a pipoca.
Conta um itan que Obaluayê foi visitar a sua terra natal. Chegando lá, havia uma festa onde todos estavam super bem vestidos. Obaluayê , constrangido por conta da sua aparência, resolveu espiar a festa pela fresta da porta do salão. Ogum percebeu a presença de Obaluaye e viu a sua angústia em não participar da festa. Foi então que Ogum foi ao encontro de Obaluaye e ofereceu uma coroa de palhas para que ele cobrisse as suas feridas. Obaluaye ainda muito sem graça, vestiu a coroa dada por Ogum e adentrou na festa para se divertir com os seus, sem ser reconhecido. Oya, a senhora dos ventos, entendeu tudo que estava acontecendo. Com sua personalidade pautada no tudo ou nada, lançou uma ventania bem na hora que Obaluaye estava dançando no meio do salão. O vento levantou as palhas da sua vestimenta, expondo todas as feridas abertas que cobriam o corpo de Obaluaye. Os convidados ficaram horrorizados e queriam sair correndo daquele lugar, pois o que eles viram era feio demais. Entretanto, antes que as pessoas saíssem, Oya com sua magia fez com que as feridas de Obaluaye pulassem para o alto e se transformassem em pipocas, cobrindo o chão como se fossem flores brancas.
No mês de agosto, Obaluaye nos convida não só para sua festa, o Olubajé, mas sobretudo para que nós, possamos compreender que as nossas dores precisam ser vistas, nossas chagas precisam ser expostas para que haja cura. A cura está em transformar a nossa ferida em flores. Compreender que é preciso passar um vento para que nossas palhas levantem e mostrem as nossas chagas. Entender e experienciar o processo. Esse percurso vai além da dor propriamente dita, mas da vergonha de nos mostrar. Da angústia em pensar no que o outro vai dizer ou pensar de nós. Atravessar por esse percurso é preciso ter coragem. A coragem que o milho teve em se jogar numa panela com óleo fervendo e se transformar em pipoca. Deixar de ser deburú para ser gugurú.
Que possamos estar em silêncio para entendermos o que Obaluaye nos deixou como força e autoconhecimento. Que neste silêncio do mês de agosto possamos nos ouvir , nos aceitar, nos perdoar e sobretudo nos transformar. Arrancar as cascas das nossas feridas mais profundas, aguentar a dor e passar pelo processo de ferida para cicatriz. A cicatriz serve pra gente lembrar toda vez que olhamos para ela, que tudo passa, inclusive a dor. Serve pra gente ver o quanto fomos valentes para suportar o processo de cura, mas que passou, assim como tudo na vida.
Mas que crendice sem o lirismo que só o fado tem! Só no ocidente que o mês de agosto é atribuído ao mês do desgosto. Pensar a partir da perspectiva yoruba, salva. O pensamento iorubá é preciso. Pensar como o colonizador não é preciso.

Iya Paula de Odé
Iyalorixá Paula de Odé, idealizadora e presidente do Instituto Ọṣẹ Dúdú, Presidente do Afoxé Ómó Ifá - RJ, ativista, palestrante e pesquisadora do grupo Africanias da escola de música da UFRJ
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