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A África Vendida: o risco da descaracterização das tradições afro-brasileiras na busca por legitimação ritual

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • há 2 dias
  • 6 min de leitura

Por: Adriano Cabral


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✅ 23/10/2025 | 16:23


Nos últimos anos, um fenômeno vem se tornando cada vez mais visível dentro das religiões de matriz africana no Brasil: sacerdotes, iniciados e adeptos que viajam para o continente africano em busca de uma suposta “legitimação” de seus ritos. Em muitos casos, trata-se de uma peregrinação espiritual sincera — o desejo de reencontrar a origem, de compreender a raiz ancestral da fé. Mas em outros, o que se observa é a formação de um mercado de certificações, iniciações rápidas e “selos de autenticidade” que transformam o sagrado em mercadoria, e a ancestralidade em um produto de exportação. O que começou como um gesto de reconexão identitária corre o risco de se converter em uma forma de colonização espiritual ao inverso — onde o Brasil, outrora colonizado, volta-se a uma África que agora vende a própria tradição, muitas vezes moldada às expectativas de quem a procura.


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O candomblé e outras religiões afro-brasileiras nasceram de um processo complexo e doloroso. São frutos da diáspora, da escravidão, da resiliência cultural e da recriação. No Brasil, os povos africanos se misturaram entre si e com os indígenas e europeus, reinventando práticas religiosas, cânticos, ritos e saberes. Essa pluralidade produziu um patrimônio espiritual ÚNICO, com expressões regionais profundamente enraizadas: o candomblé da Bahia; o Omolokô no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Ceará; o Tambor de Mina no Maranhão; o Batuque no Rio Grande do Sul; o Xangô pernambucano; entre tantos outros. Nenhuma dessas tradições é uma simples cópia de práticas africanas — todas são recriações vivas, tecidas no território brasileiro.


Apesar disso, nas últimas décadas, consolidou-se um discurso de que a legitimidade ritual só poderia vir da “África original”. Esse discurso, amplamente difundido por redes sociais, documentários e certos circuitos religiosos, transformou a viagem ao continente africano em um rito de passagem simbólico e, muitas vezes, em um negócio. Sacerdotes brasileiros têm buscado iniciações em países como Nigéria, Benin ou Togo, acreditando que ali obterão uma espécie de chancela espiritual superior, capaz de lhes conferir prestígio no retorno ao Brasil. Alguns voltam de fato enriquecidos de experiências culturais, carregando novos saberes e vínculos legítimos. Outros, porém, regressam com títulos comprados, certificados forjados e um imaginário idealizado sobre uma “África pura”, que nunca existiu.


A antropóloga Stefania Capone (2003) descreve esse movimento como a busca pela “África imaginada”, uma África simbólica construída a partir das carências e desejos da diáspora. Essa busca por pureza e origem é compreensível — é um gesto de reparação e afirmação identitária —, mas pode tornar-se perigosa quando ignora a historicidade brasileira das tradições afro-religiosas. A tentativa de restaurar o “modelo africano” acaba, paradoxalmente, por desvalorizar o que o Brasil produziu de mais autêntico: o sincretismo, a adaptação, a capacidade de sobreviver e reinventar o sagrado dentro da dor e da exclusão.


Em muitos casos, as iniciações oferecidas a estrangeiros na África são versões adaptadas dos rituais tradicionais. A demanda crescente de brasileiros, europeus e norte-americanos interessados em “viver uma experiência espiritual autêntica” criou um mercado turístico religioso. Para atender a essas expectativas, sacerdotes africanos, pressionados por necessidades econômicas, encurtam ritos, traduzem cantos, simplificam sacrifícios e flexibilizam exigências. É o que o antropólogo Stephen Selka (2007) chama de “autenticidade mediada”: a tradição deixa de ser um espelho da comunidade para se tornar um espetáculo moldado pelo olhar do visitante. Nesse cenário, o ritual deixa de ser vivência sagrada e se converte em performance — uma encenação do que se imagina ser o “verdadeiro rito africano”.


O problema é que essas versões adaptadas, ao retornarem ao Brasil, passam a ser tomadas como o novo padrão de pureza. Lideranças locais que não tiveram acesso a essa “formação africana” são muitas vezes deslegitimadas, e terreiros com décadas de história são colocados em dúvida por não seguirem a mesma estética ritual importada. Assim, a viagem à África, que deveria ampliar horizontes, acaba por gerar divisões internas, elitização espiritual e exclusão simbólica. O sagrado passa a ser medido não pela dedicação, pelo axé ou pela ancestralidade comunitária, mas pela capacidade financeira de viajar e “trazer um título”.


Além disso, há o risco da mercantilização da fé. Relatos de campo mostram que, em alguns países africanos, surgiram intermediários especializados em organizar “pacotes de iniciação” para estrangeiros. Pagando quantias significativas, o visitante pode ser “feito” em poucos dias, receber colares, títulos e fotografias ritualísticas — uma iniciação rápida, moldada à pressa do turismo e à urgência do reconhecimento. Essa dinâmica cria um desequilíbrio simbólico grave: a África passa a vender uma imagem de si mesma; o Brasil passa a consumir essa imagem; e o resultado é um rito esvaziado, sem o tempo, o segredo e o sentido que sustentam o verdadeiro axé.


Essa situação também reverte uma lógica histórica. Durante séculos, as religiões afro-brasileiras foram perseguidas, demonizadas e criminalizadas no Brasil. Foi nas senzalas, nos quintais e nos barracões que o sagrado sobreviveu — escondido, camuflado, reinventado. Essa resistência construiu um sistema religioso próprio, com hierarquias, linguagens e princípios espirituais profundamente enraizados no contexto brasileiro. Buscar, agora, na África uma validação externa, é também desconsiderar essa trajetória de autonomia. É como se a força espiritual construída no Brasil — a que resistiu à escravidão, ao racismo e à intolerância — fosse considerada menor diante de uma chancela “importada”.


Não se trata, evidentemente, de negar a importância da África. A ligação ancestral é real e deve ser celebrada. As trocas culturais entre sacerdotes africanos e brasileiros podem ser enriquecedoras quando baseadas no respeito e na reciprocidade. O problema é quando essa troca se transforma em dependência. Quando a África é vista não como origem simbólica, mas como autoridade absoluta. Quando a tradição brasileira se curva diante de uma tradição estrangeira, esquecendo que ela própria é fruto de uma história espiritual legítima e profunda.


O antropólogo Luiz Nicolau Parés recorda que o candomblé é uma religião de recriação. Ele não é um fragmento preservado do passado africano, mas um sistema que se formou no Brasil, com lógicas próprias. Cada terreiro é um microcosmo espiritual, com variantes regionais, dialetos, plantas, músicas e estilos próprios. A imposição de um modelo único — seja ele africano ou brasileiro — representa um empobrecimento cultural. A força das religiões afro-brasileiras está justamente na sua pluralidade.


Outro ponto de reflexão é a desigualdade econômica que permeia esse fenômeno. Viajar à África custa caro. Pagar por iniciações, objetos rituais e estadias encarece ainda mais o processo. Isso cria um abismo simbólico entre quem pode e quem não pode bancar esse tipo de experiência. Forma-se uma nova hierarquia de prestígio: os “iniciados na África” ocupam posição superior aos “formados no Brasil”. Assim, o axé passa a ser medido em moeda estrangeira, e o que era expressão de fé torna-se símbolo de status.


É preciso, portanto, pensar criticamente esse movimento. Há intercâmbios legítimos, diálogos culturais sinceros, parcerias de aprendizado que realmente enriquecem as tradições de ambos os lados. Mas há também o risco de descaracterização, elitização e fetichização da ancestralidade. E quando a ancestralidade se transforma em fetiche, ela perde sua potência espiritual e política. O axé deixa de ser força vital e torna-se mercadoria simbólica.


O desafio contemporâneo das religiões afro-brasileiras é equilibrar essas duas dimensões: manter o elo com a África sem submeter-se a ela; preservar a tradição brasileira sem fechar-se ao diálogo. Isso exige consciência crítica, ética e responsabilidade coletiva. As lideranças religiosas devem refletir sobre o que realmente confere legitimidade a um sacerdote: o título que vem de fora ou o compromisso que se constrói dentro da comunidade? Os pesquisadores e comunicadores, por sua vez, precisam tratar o tema sem romantismo nem condenação, compreendendo suas nuances sociais e espirituais. E o poder público, ao reconhecer as religiões afro-brasileiras como patrimônio cultural, deve apoiar o fortalecimento de suas bases locais — os terreiros, os mestres, os guardiões do saber.


A fé afro-brasileira nasceu da resistência. E é nesse espírito que ela deve continuar. A busca pela África pode ser um reencontro, desde que não se transforme em uma nova forma de colonização. A tradição não precisa de carimbo: precisa de vivência, de respeito e de consciência. O verdadeiro axé não se compra — ele se constrói, no tempo, na partilha e na continuidade das gerações.


Referências indicadas:

Capone, Stefania. A busca da África no Candomblé: Tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

Parés, Luiz Nicolau. A formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Unicamp, 2007.

Verger, Pierre. Orixás: Deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1981.



Adriano Cabral - AxéNews

Adriano Cabral

Dr. h. c. Luiz Adriano Santos Cabral (Adriano Cabral) é filósofo formado pela UCP Petrópolis; MBA em Administração Pública; Pós graduado em docência de Filosofia e Teologia; Primeiro secretário da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa da OAB 22° Subseção Magé/ Guapimirim... [+ informações de Adriano Cabral]  


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