Por: Ẹ̀gbọ́n Moyses de Ògún

✅ 08/02/2025 | 07:03
Abordar o tema da transexualidade nos terreiros exigiu profunda sensibilidade, respeito, mas também coragem. É importante recordar que os terreiros foram construídos e mantidos devido à resistência dos nossos ancestrais, e naturalmente são locais adaptáveis a necessidade de resistir. Os terreiros são espaços onde os negros remontaram sua fé e práticas religiosas, mas também um local onde era dado aos indivíduos valor, cultura e respeito.
O Candomblé é uma religião que não observa as pessoas com distinção, então os terreiros por natureza são espaços de resistência e acolhimento. O Candomblé na essência sempre aceitou homens e mulheres homossexuais, pois a orientação sexual não é tratada como doença ou pecado. O Candomblé aceita a condição humana como ela de fato é, isso é demonstrado pela maioria de pais, mães e filhos de santo, gays e lésbicas, que ajudaram a manter e propagar o Candomblé no Brasil e no mundo.
O transexual, todavia, ainda busca este mesmo espaço e reconhecimento. O Candomblé é binário, masculino e feminino, desde códigos de vestimenta até especificações ritualísticas.
Ìyálòriṣa Roberta (Betinha) de Oṣún, mulher trans e mãe de santo do Ilê Àṣẹ Alade Omí Iyale, nos conta um pouco sobre sua percepção:
“Ainda há muito o que se discutir sobre a transexualidade nos terreiros, ainda existem muitas barreiras e preconceitos, infelizmente não há nenhum tipo de direcionamento ou orientação quanto a isso, como as casas pautam isso, é necessário educação, respeito as pessoas trans não acontece por osmose ou por imposição. Precisamos falar sobre isso. O sagrado precisa ser vivenciado de forma plural, pelo coletivo e pelo individual, sem segregação e sem humilhação. Ainda há muito o que evoluir. Se as pessoas observassem o mundo pelos nossos olhos, entenderiam o quanto já é difícil viver em um corpo que não nos reconhecemos, precisamos ser reconhecidos como nós nos enxergamos, como nós nos identificamos, com os mesmos direitos e deveres de todos. Na minha casa de santo, o Ilê Olá, fui muito bem acolhida, meu Pai Karlito já compreendia minha condição e foi um grande incentivador e apoiador, tenho muito orgulho de saber que posso contar com ele e com meus sacerdotes, meus irmãos e irmãs me respeitam e eu os respeito. Sinto-me acolhida, segura, e principalmente parte da casa, isso é o mais importante.”
Este relato evidencia o quanto a liderança do terreiro é profundamente importante para o fim deste estigma, mas sabemos que infelizmente algumas mentes são ligadas a uma máscara “tradicional”, buscando um ideal de pureza, que não nos pertence.
Antônia Latasha ou Nengua ria nkisi Nkanduanxi dia hangoromeia, zeladora do Inzo Jimpanji Hangoromeia, nos traz o seguinte relato:
“Fui iniciada na religião por meu pai tata kangambadiama muito jovem e antes da minha transição.
Mais velha, dei continuidade em outra casa, já no início da transição e meu sacerdote dizia: "Aqui dentro você é nkanduanxi, lá fora você pode ser o que quiser".
Com o passar do tempo e desenvolvimento dentro dessa casa, eu acabei construindo uma carreira de modelo e sendo assim, assumindo de vez minha identidade, foi quando tudo piorou. Esse sacerdote exigia que eu retirasse brincos, maquiagens e tudo que era relacionado ao gênero feminino, e junto disso vieram alguns comentários negativos sobre minha aparência, cabelo e comportamento. Com o passar do tempo, comecei a questionar minha questão de gênero, pois para mim, a religião sempre foi e sempre será uma das coisas mais importantes na minha vida! Mas como deixar de ser quem eu sou? Como ser quem eu sou está me fazendo mal em um lugar que deveria me acolher e me fazer o bem? Foi aí que eu decidi fazer terapia, pois me encontrava muito confusa e não conseguia lidar com esse fato de ser obrigada a criar duas personalidades, uma para o candomblé e outra para ser eu mesma.
Então eu saí da casa. Fiquei muito tempo sem me cuidar espiritualmente, pois em muitas casas de axé eu não era aceita exatamente pelas vestimentas, por ser quem eu sou.
Já com uma certa idade, foram chegando os filhos, foi-se montando a casa e hoje me encontro com um sacerdote que me acolhe realmente pelo que eu sou, respeitando, obviamente alguns preceitos e requisitos que o candomblé pede em relação a gênero de nascimento, mas isso é assunto de fundamento e eu não estive aqui para discutir isso. Criei em 2023 o coletivo @kiguaubuntu, me abrindo portas como ativista e candombecista trans, e essas portas nos levaram ao caminho do nosso primeiro documentário, que será lançado em fevereiro de 2025.
Então na minha visão, como mulher trans, preta, pansexual, nengua ria nkisi, candomblecista, angoleira e periférica... Espaços estão sendo conquistados pela nossa comunidade e não vai ser o espaço da fé que nos vai ser negado! Será que o candomblé que é sexista ou são as pessoas que são transfóbicas?”_
Esse questionamento final é facilmente respondido. O Candomblé é influenciado pela sociedade, mais do que a influência, por isso, as lideranças devem estar prontas para lidar com as demandas trazidas por seus consulentes, filhas e filhos. A demanda da identidade de gênero não é isolada, é de extrema relevância e com questões litúrgicas facilmente superáveis.
Sejamos genuinamente acolhedores, àṣẹ!

Ẹ̀gbọ́n Moyses de Ògún
Moyses de Ògún é Ẹ̀gbọ́n e conselheiro no Ilê Olá Omí Àṣẹ Opo Àràkà, delegado de cultura em São Bernardo do Campo eleito pelo povo de terreiro na elaboração do plano municipal de cultura.
Defensor da laicidade do estado, liberdade religiosa e dos povos tradicionais de terreiro, executivo do mercado financeiro e escritor. [+ informações de Ẹ̀gbọ́n Moyses de Ògún]
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Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews. |
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