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Raízes Islâmicas e as Religiões Afro-brasileiras

Atualizado: 29 de jan.

Por: Babalorixá Márcio de Jagun

Pintura 'Negra Quitandeira', de Antonio Ferrigno

14/11/2023 | 06:38


Segundo Mario Filho, Zélio Fernandino de Morais teria recebido orientações de uma entidade de origem muçulmana (denominado “Orixá Malê” ou “imalê”), o qual seria um malaio muçulmano.



Vale dizer que “imalê” era como os iorubas denominavam os muçulmanos. Em uma das fitas gravadas por Zélio, este teria dito que os punhais passaram a ser introduzidos nos símbolos e “pontos riscados” de Umbanda desde a manifestação de “orixá malê”, a partir de 1913. O próprio nome da religião Umbanda teria sido, inicialmente, Alabanda em homenagem ao seu orientador, o “orixá malê”. A versão foi confirmada por Leonardo Cunha, um dos bisnetos de Zélio, em palestra proferida em 21 de janeiro de 2022, no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. Segundo Cunha, atual dirigente da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade (primeira Casa de Umbanda fundada por Zélio Fernandino de Moraes, ainda em 1908), no início, o movimento não tinha uma nomenclatura própria. Apenas em 1913, Zélio resolveria batizar a iniciativa e teria experimentado três nomes: Tupi banda, Zâmbi banda e Ala banda.


Em uma mistura do idioma bantu banda (lado) e do árabe Ala (Deus), Ala banda seria uma homenagem ao “orixá malê”. O nome definitivo “Umbanda” viria, posteriormente, de uma inspiração no sânscrito, unindo dois mantras e, significando, em tradução livre “a unidade do Todo”.


A presença islâmica, na matriz religiosa africana, extrapolou a religião tradicional ioruba. Há indícios de que ela tenha se espraiado até as práticas da Umbanda. Ao se referir à presença muçulmana no sudoeste da África, Verger (1992 [1966], p. 25) cita que:


A infiltração dos mercadores muçulmanos em direção à Costa deve ser muito antiga. Sua presença em Uidá, foi ali notada pelo Chevalier des Marchais, que disse terem eles chegado àquele ponto em 1704. O fato de os autores dos séculos XVII e XVIII se referirem às vezes aos “sacerdotes de fetiches” como “marabouts” é também significativo.



Marabu ou marabout, em inglês (em árabe: مُرابِط ; romanizado:  murābiṭ), é um líder religioso muçulmano, um mestre. Na África Ocidental, é um estudioso do Alcorão ou professor religioso. O termo também define homens santos que sobrevivem de esmolas, murshids sufis (“Guias”) ou líderes de comunidades religiosas.


Termo de fonética bem parecida (“marabô”), ouve-se em espaços religiosos afro-brasileiros. Dentro de Terreiros de Umbanda, em pleno século XXI, podemos nos deparar com Entidades, em transe mediúnico, que se apresentam na falange do chamado “Povo de Rua”, como “Senhor Marabô” ou “Exu Marabô”. Estas entidades, inclusive, mencionam sua origem, fazendo alusões a um passado remoto, na antiguidade, sendo dotados de saberes aprendidos no Oriente.


Este ponto de Exu Marabô, utilizado na Umbanda, faz menção a uma origem remota, uma ligação a velhas lendas e ainda a sabedoria de um mago:


À meia noite, ao cair da madrugada

Galo canta é alvorada pia itatuité

Não sei de onde começou a caminhada

Encruza, calunga, estrada,

Venha de onde vier,

Ele é um mago, o senhor das oferendas

O homem das velhas lendas

Que faz sangue gelar

Ele é um bruxo que faz cura, faz feitiço

Em macumba de catiço, ina, ina, mojubá

Exu Marabô, Exu Marabô, Exu Marabô,

Ele é elebara, é iaô (Informação verbal).


De acordo com a tradição oral da Umbanda, Exu Marabô tem uma relação mítica com a Cabala. Como se sabe, a Cabala é um sistema filosófico associado ao judaísmo, portanto, judaísmo, islamismo e cristianismo possuem a mesma fonte originária. Por isso, são consideradas religiões abraâmicas. A Cabala também possui fortes ligações com o sufismo islâmico.


Outra peculiaridade que aponta para uma interligação entre Exu Marabô e o Islã, é a tradição umbandista de associar esta Entidade ao òrìṣà Ṣàngó, exatamente aquele deus ioruba que era Rei de Ọ̀yọ́, o qual teria chegado à terra dos malês e adotado preceitos muçulmanos para si e seus herdeiros, como abordado no início deste capítulo.


Apesar dessas formulações, que apontam uma integração plena e pacífica no modelo sincrético afro-islâmico, uma outra corrente de estudiosos indica que a presença do Islã na região ioruba causou prejuízos diretos à cultura originária daquela área. Autores, como Oladosu (2005) e Oladiti (2014), defendem que o Islã, como o cristianismo, travou uma disputa pela hegemonia cultural e religiosa na África Ocidental. Segundo eles, tal competição teria concorrido diretamente para o comprometimento da tradição ioruba.

Segundo os citados pesquisadores, haveria, ao menos, quatro argumentos dessa hipótese destrutiva: 1) A desvalorização da oralidade em detrimento da tradição escrita islâmica, ainda antes do colonialismo europeu. O estímulo à alfabetização em árabe, trazida pelos muçulmanos à região sudoeste da África, a pretexto de facilitar o comércio, teria dinamizado a islamização e prestigiado o uso da comunicação escrita; 2) O outro fator, que colaborou para tal cenário, foi a legitimação das práticas sociais já consolidadas, como a poligamia masculina. Por sua vez, o cristianismo se opunha a tal forma de relação matrimonial e condenava esse tipo de casamento. Assim, o Islã foi adaptando-se melhor aos costumes locais, o que teria facilitado sua imposição sistemática e sutil; 3) A vinculação idearia de certos orixás ao demônio (existente tanto no cristianismo como no islamismo) atrelou as religiões tradicionais iorubas a uma lógica pecaminosa e negativa. As divindades mais afetadas por este sincretismo negativo foram Èṣù (associado ao sexo) e Ọ̀rúnmìlà (ligado ao conhecimento do destino); 4) O quarto e último elemento destrutivo seria o impedimento dos festivais públicos de celebração aos deuses da tradição ioruba.


Na comparação entre os impactos e trocas culturais na África pré-colonialismo moderno, considerando a presença do islamismo e do catolicismo, temos que a religiosidade muçulmana caracterizou-se por uma adaptação e por uma relação bem mais harmoniosa com os costumes locais, apesar de certas discordâncias dogmáticas. Nesse aspecto, o Islã jamais propôs uma imposição ou uma substituição religiosa às elites locais. Antes, pelo contrário, estimulou a incorporação de novos adeptos, oferecendo um novo status aos comerciantes já estabelecidos, constituindo assim uma outra ordem social, econômica e política, sem traumas severos.






Babalorixá Marcio de Jagun

Márcio de Jagun é escritor e dicionarista especializado em gramática ioruba, autor de sete obras publicadas. Dentre elas, Orí a Cabeça como Divindade (Litteris, 2015).

Contato: ori@ori.net.br


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