Ogum não é da Capadócia!
- WR Express
- 22 de abr.
- 3 min de leitura
Por: Pai Caio

✅ 22/04/2025 | 22:04
Em pleno 2025, não há espaço para a repetição acrítica de heranças coloniais que violentaram, maquiaram e embranqueceram os alicerces espirituais dos povos africanos escravizados e de seus descendentes. É tempo de reafirmar com orgulho e lucidez: Ogum não é da Capadócia. O orixá guerreiro, forjador do ferro, guardião dos caminhos e símbolo de bravura ancestral, não se curva à fantasia sincrética que o associou, durante séculos, à figura de São Jorge, um santo católico moldado nas areias da Ásia Menor e canonizado sob os olhos da Europa medieval, este que é uma paixão nacional e apontado por ser responsável por diversos milagres especialmente entre setores mais populares da sociedade
A associação entre Ogum e São Jorge, ainda comumente enraizada na consciência coletiva, é um resultado direto da resistência dos povos africanos contra a repressão brutal da Igreja e do Estado durante o Brasil colonial. Para sobreviver, foi necessário maquiar os orixás com a iconografia cristã, inserindo seus nomes e atributos sob o manto dos santos. Essa estratégia de disfarce — engenhosa, sim, mas forçada — foi uma forma de inteligência ancestral para burlar a vigilância colonial, proteger a fé, manter viva a tradição em solo inimigo.
Vamos lembrar da Irmandade NS do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito, com a proibição da entrada de negros na igreja dos “brancos” no período colonial, a mesma construía capelas adjacentes com elementos católicos e africanas realizando rezas em kimbuntu, kicongo, efon e iorubá. Este grupo fraterno foi encarregado de transmitir nosso legado ancestral através de tecnologias avançadas. Sua ação driblou a brutalidade do regime e liderou a libertação de muitos escravizados. Isso foi possibilitado através da compra de suas liberdades, financiadas por eles próprios.
Essa inteligência, no entanto, não pode ser confundida com conciliação espiritual. Ela foi, sobretudo, um instrumento de guerra cultural e sobrevivência identitária. O culto a Ogum, que atravessou o Atlântico com os povos iorubás e foi reconfigurado em diversas nações da diáspora, carrega valores, cosmologias e linguagens muito distintas da doutrina católica. Ogum não é mártir de Roma; ele é caçador, ferreiro, senhor do tempo e da lei. É energia viva que abre passagem na mata e desmancha os ferrolhos da opressão.
Em um país onde a herança colonial ainda pauta boa parte das estruturas sociais e espirituais, é urgente repensar o modo como tratamos os símbolos e fundamentos da ancestralidade afro-brasileira. A reafirmação da originalidade dos orixás é um ato político, estético e espiritual. Desfazer o sincretismo forçado não significa negar a história de resistência, mas reconhecer sua profundidade e ultrapassá-la como barreira imposta. Significa, hoje, dizer que a maquiagem já não é mais necessária.
Ao longo dos últimos séculos, a experiência religiosa afro-brasileira foi sistematicamente silenciada, criminalizada e, por fim, embranquecida em nome de uma suposta convivência pacífica com os valores europeus. Ogum, Iemanjá, Xangô e Oxóssi foram tornados santos em uma tentativa de domesticar a força que carregam. Mas a geração atual carrega a possibilidade histórica de reverter essa lógica. Somos filhos e filhas da diáspora, e é a partir de nossas vozes, terreiros, corpos e celebrações que narrativas podem ser reescritas e corrigidas. Ainda que eu tenha grande carinho e até devoção pelo santo guerreiro, hoje eu sei que ele não é meu pai Ogum.
Não se trata de apagar o que foi feito, mas de recontar com justiça o vivido. De descolonizar o olhar e permitir que Ogum seja Ogum — em sua inteireza africana, sem as armaduras e dragões que lhe foram impostos. Reconhecer sua raiz iorubá é abrir espaço para o diálogo com os saberes apagados, mas não extintos. É resgatar a dignidade de um povo e de uma religião que construíram, a ferro e fogo, os alicerces espirituais deste país.
No chão dos terreiros, nas encruzilhadas das cidades, nas lanças erguidas nas festas de rua e nas memórias que resistem no sangue do povo preto, Ogum segue marchando. Em 2025, o recado é claro: não precisamos mais esconder nossos deuses. Eles nunca foram santos católicos. Eles são orixás. Essa verdade pode ser expressa, com a força que a história nos negou, mas que a ancestralidade nos nutri e retribui diariamente.
Patakorí, Ogum!

Pai Caio
Caio Bayma nasceu na Baixada Fluminense, Nilópolis, foi morar no Morro dos Macacos por conta da proximidade com o trabalho, faculdade e atuação no movimento social, hoje reside no centro do Rio de Janeiro. Graduando em Matemática, integra a equipe do Observatório Adolescente (OPPA /UERJ) no eixo de religiosidade e atuou como primeiro extensionista na Superintendência de Saberes Tradicionais da UFRJ. [+ informações de Pai Caio]
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Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews. |
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