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O terreiro é uma pluriversidade

Por: Iya Paula de Odé

Foto: Revsta Senso

27/05/2023 | 10:21


O terreiro de candomblé nada mais é que um laboratório de saberes. Quando chamamos alguém a terreiro, chamamos para desafiar, provocar. E quando saimos a terreiro, entramos na discussão, entramos na luta.




O terreiro de candomblé é um espaço civilizatório de reconexão ancestral, que tem como princípio imediato aquilombar, acolher e orientar os seus adeptos para que eles possam compreender os seus lugares no mundo físico e/ou espiritual a partir da sua própria existência. Para fazer parte de um terreiro de candomblé, é preciso ter coragem! Coragem para dedicar-se ao outro e consequentemente a si mesmo. Candomblé é uma religião voltada para si, para o outro e para o coletivo. É no coletivo que o indivíduo é fortalecido. A força do terreiro é circular. Mas o que é o aquilombamento nos terreiros de candomblé?

A palavra quilombo é originária do povo bantu que significa: sociedade formada por jovens guerreiros que pertenciam a grupos étnicos desenraizados de suas comunidades. A palavra quilombo é mais do que uma expressão, é uma ideologia. Vamos fatiar esse significado trazendo para a nossa realidade, para a realidade do povo de axé, do povo de terreiro?


Sociedade - Nós, povos de terreiro , formamos uma sociedade religiosa, com normas e regras internas e também regras ritualísticas que são tradicionais das casas matrizes, a fim de nortear aquela comunidade. Nessa sociedade há sim uma hierarquia necessária mas não há subalternidade, pelo menos não deveria ter.


Por que não? Porque a subalternidade se refere aos trabalhos inferiores, e dentro do terreiro TODOS os trabalhos são importantes. Quando pensamos em subalternidade, pensamos também em hierarquia vertical e colonial, alguém comandando uma pessoa em posição inferior. Mas no terreiro de candomblé, esse princípio da hierarquia vem por outro viés. Vem no sentido da experiência. um igual, pode perfeitamente orientar quem está chegando por exemplo.


A hierarquia no terreiro é diferente da hierarquia militar. Numa guerra, os soldados vão na frente e o general é o último a batalhar. No terreiro, os que tem patente alta são os primeiros a irem num confronto espiritual. A ordem no enfrentamento é de cima para baixo. Entendemos que os mais novos são os mais vulneráveis, por isso a yalorixás, ogans, ekedis e egbomis ficam de frente na execução dos trabalhos espirituais protegendo os mais novos. A hierarquia do terreiro não é só título, mas também envolvimento e comprometimento.


Formada por jovens guerreiros - O mais velho de candomblé de hoje, foi um jovem quando começou. Fomos jovens guerreiros um dia… Mas por que guerreiros? Porque não é fácil encarar noites sem dormir, trabalhando para o outro e ainda ter que dançar e cantar com alegria e devoção uma noite inteira para os nossos deuses e deusas,. Quando acaba tudo, começa a confraternização descontraída entre os membros da comunidade. Isso sim é ser guerreiro.


Imagino as minhas agbás, as minhas egbom nos tempos em que o candomblé era proibido e perseguido pela polícia e pela sociedade. Como se comportavam as comunidades? Hoje continuamos perseguidos pela sociedade e pelos bandidos de Cristo, mas isso é outro papo. Temos que estar preparados realmente para uma guerra.

Como os ogans dos terreiros se colocam socialmente? Como verdadeiros guerreiros. Cuidando do espaço físico, fortalecendo o espaço espiritual, defendendo a casa de candomblé, defendendo os mais novos e os mais velhos. São verdadeiros ajaguna (guerreiros)!


Grupos étnicos - O Brasil é formado por vários grupos étnicos africanos ( Fon, Bantu, Ioruba, Jeje) logo nos terreiros também há essa formação. Pessoas que saem da nação Angola e vão pro Jeje. Pessoas que saem do Jeje e vão pro Ketu, pessoas que saem de Angola e vão pro Efon, enfim, mais uma referência para essa contextualização sobre quilombo.


Todo esse intercâmbio de culturas existe, dentro dos terreiros de candomblé. Onde há troca de saberes apesar de a tradição ser mantida.


Desenraizados de suas comunidades - Nós , povo preto brasileiro, afro descendente, somos diariamente desenraizados dos nossos ancestrais, da nossa cultura. A colonização fez isso com os nossos e o sistema racista continua fazendo, cortando as nossas raízes

Mas somos como ewe abomodá que nasce a partir da própria folha. Nós nos reinventamos o tempo todo para nos mantermos vivos. Ewe abomodá nos ensina isso.

Quando encontramos um terreiro, buscamos nele essas raízes, que nos foram arrancadas. O terreiro de candomblé é capaz de ressignificar os quilombos na sua originalidade.

Hoje, infelizmente muitos quilombos foram desenraizados da ideologia original pelos evangélicos. Alguns quilombolas se distraíram com a branquitude e com as religiões colonizadoras. Mas, graças a Eledumare, existe o terreiro para manter as nossas tradições.


É no terreiro que resgatamos a nossa cultura da música, do canto, da dança e da arte. É no terreiro que nos organizamos politicamente.É no terreiro que buscamos forças para encarar a rua, o trabalho, a sociedade civil, a família.. O terreiro é nosso porto seguro, a liderança é o nosso norte e os Orixás a nossa guiança.




Iya Paula de Odé - AxéNews

Iya Paula de Odé

Iyalorixá Paula de Odé, idealizadora e presidente do Instituto Ọṣẹ Dúdú, Presidente do Afoxé Ómó Ifá - RJ, ativista, palestrante e pesquisadora do grupo Africanias da escola de música da UFRJ




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