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O corpo é uma delícia

  • Foto do escritor: WR Express
    WR Express
  • há 11 horas
  • 9 min de leitura

Por: Ademir Barbosa Junior

09/06/2025|08:44


Há vários anos, pela internet, uma amiga me fez uma provocação: “Não existe relação entre o físico e o espiritual. Cada qual está num âmbito diferente.” A maneira mais prática, rápida e fraterna de discordar dessa afirmação foi “Como uma feijoada e tente meditar em seguida sem cair no sono!”.


De modo geral, conceitos e mesmo sistemas religiosos, espirituais e filosóficos dissociam o corpo e a matéria da prática espiritual e mesmo das relações com as emoções, enquanto a concepção holística aborda o ser em sua totalidade física, espiritual e emocional, compreendo-a, ainda, parte a parte, sem, contudo, fragmentá-la.



A contradição maniqueísta, em oposição ao holismo, manifesta-se de várias maneiras. De modo geral, as sociedade ocidentais ditas “civilizadas” excluem o corpo enquanto elemento das experiências emocionais e espirituais enquanto fixa padrões de beleza únicos, excludentes e mesmo inatingíveis, propagados e exaltados à exaustão pelas mídias eletrônicas. Ao descartar o corpo do transcendente, essas sociedades o legitimam enquanto elemento de produção e reprodução, o qual, como cana moída, ao final da breve existência humana, é descartado. Contudo, a agressão não é apenas ao corpo, parte visível e palpável do ser encarnado, mas também ao emocional e ao espiritual desse ser, uma vez que, ao reduzir a importância de uma de suas partes, avilta-se o todo, holisticamente constituído2.


Em muitos de meus trabalhos tratei do caráter holístico da Umbanda, elencando a correlação entre corpo, mente e espírito. Aqui, abordamos de forma especial o corpo. A Umbanda é uma religião que, além de valorizar o corpo enquanto matéria em si e elemento de manifestação do emocional e do espiritual, reconhece-o protagonista em múltiplos aspectos de sua liturgia. Essa concepção, aliás, auxilia a vivenciar a Umbanda no cotidiano e a compreender o erótico e a sexualidade não como elementos opostos à prática espiritual.


Estranho seria se as religiões tradicionais de terreiro, a Umbanda em particular, isolassem o corpo a ponto de, por exemplo, reconhecer apenas o sexo biológico, e não a multiplicidade de gêneros. Isso descaracterizaria a visão holística, ao excluir as características emocionais, afetivas, de desejo, e mesmo as espirituais, com suas histórias vivenciadas em outras encarnações, focando apenas no corpo físico, genitalizando-o, reconhecendo-o apenas a partir de determinadas características binárias homem-mulher. Ademais, os Povos de Terreiro são conhecidos historicamente pelo acolhimento aos marginalizados e excluídos, significativamente gays, lésbicas, travestis etc. Tal acolhimento parte do reconhecimento da diversidade e se amplia a ações como o reconhecimento do nome social (muito antes da legislação vigente a respeito) e das transições físicas. Contudo, o processo de desconstrução/decolonicação e quebra de preconceitos são diários, e ainda temos muito a avançar.


Em 2017 um artista plástico candomblecista ilustrou um relato mitológico em que Oxum e Iansã são amantes3. Choveram críticas do Povo de Axé, alegando que a ilustração ofendia a Espiritualidade. Em 2019 um sacerdote umbandista, em sinal de protesto à censura de uma revista em quadrinhos, na Bienal do Rio de Janeiro, porque havia dois rapazes se beijando, na ilustração de capa, criou uma ilustração com dois Orixás, num beijo homossexual. Foi duramente criticado pelo Povo de Axé, que, em sua maioria, considerou a imagem ofensiva.


Embora os detratores de ambas as imagens tenham garantido não serem homofóbicos, e sim indignados porque teria havido desrespeito, cabem algumas observações:


1) No tocante à imagem de 2017, a mesma ilustra um relato mitológico ancestral, cuja origem se perde na noite dos tempos, desconhecido pela maioria do Povo de Axé, o qual, certamente como fez com outros relatos semelhantes, o ignorou e o relegou ao esquecimento.


2) Com relação à ilustração de 2019, houve críticas contundentes e preconceituosas à orientação sexual do sacerdote, o que descaracterizou o debate a respeito do tema (houve, ainda, outras críticas, de cunho doutrinário, as quais, procedentes ou não, buscaram justificar a homofobia).


3) Se o Povo de Axé compreende que os Orixás não têm sexo, mas apresentam energias predominantemente masculinas, femininas ou mescladas, por que não se indignam com relacionamentos que fogem à normatividade hodierna, tais quais a poligamia de Xangô ou os sucessivos casamentos de Iansã, mas apenas quando se trata de contatos homossexuais, como no caso das imagens de 2017 (repita-se: ilustrativa de um relato mitológico ancestral) e 2019 (pelo respeito à diversidade e contra toda sorte de preconceito)?


Os mesmos críticos a ambas as imagens, por vezes, desconsideram a leitura simbólica de relatos mitológicos ou de pontos cantados, como “Pombogira é mulher de sete maridos/Cuidado moço, ela é um perigo”, interpretando-os ipsis litteris, mesmo quando fogem à normatividade hodierna e, muitas vezes, justificando posturas sexuais patriarcais, excludentes e opressivas, como, por exemplo, as traições a parceiros, em contraposição ao poliamor, onde há consentimento entre os envolvidos.

Evidentemente, as considerações feitas às imagens de 2017 e 2019 não se aplicam ao convite amplamente divulgado em redes sociais sobre a “festa dos Orixás gays”, esta sim uma confusão entre os conceitos de energia dos Orixás e questões de orientação sexual e gênero.


O corpo é uma realidade natural do ser encarnado, logo não um empecilho ou um fardo do qual o espírito se despirá no momento do desencarne. Não existe para se opor, atrasar ou perturbar a jornada espiritual. Como instrumento material (conectado ao emocional e ao espiritual) vivenciará o equilíbrio ou polarizações conforme for cuidado ou não pelo indivíduo e pela coletividade. Portanto, o corpo não é um fato isolado.


Protagonista, na Umbanda, o corpo passa por situações de preceitos e quizilas, como abordamos em diversos trabalhos, com o intuito de resguardo energético para diversas liturgias. Contudo, conforme também evidenciamos em todos os nossos livros, tais momentos de suspensão não invalidam os demais, como se um fosse mais sagrado do que o outro. Dessa maneira, se em situações de preceito, por exemplo, o médium se abstém de relações sexuais a fim de resguardar e potencializar sua própria energia e afinar-se ainda mais com a energia da Espiritualidade, isso não signfica que os momentos de relacionamento sexual sejam inferiores, menores. Tudo é sagrado e sacralizado, posto que vibra e movimenta Axé. Aqui não cabem os maniqueísmos, como o da anedota do monge medieval que, ao perguntar ao abade se podia rezar enquanto bebia uma caneca de vinho, diante da resposta afirmativa do líder da comunidade, passou a tomar vinho a cada momento de oração.


A Umbanda não reduz o corpo a mero instrumento de manifestação da mediunidade (incorporação, psicofonia, psicografia, intuição e outras tantas formas), mas o protagoniza, e não apenas em suas liturgias, mas no cotidiano. Como abordamos em vários livros, na mitologia dos Orixás, inclusive, estes são antropomorfizados em sua plenitude, inclusive no que tange à sensualidade. As lições decorrentes dos saberes ancestrais valoriza o corpo, não o nega ou o restringe. Por esse motivo, dentre tantos outros, esses saberes fundamentam empoderamentos étnicos, de gênero e de justiça social.


Sem dúvida o processo popularmente conhecido como incorporação é o mais concreto e palpável na manifestação de Orixás, Guias e Guardiões na Umbanda. Comprovam esse fato as múltiplas experiências descritas, bem como sua valorização em expressões como “abraço de Preto-Velho”, “chorar no colo do Orixá”, “beber da taça da Pombogira”. Nesses momentos, embora a Espiritualidade se valha do corpo do (a) médium, o mesmo é eclipsado na manifestação. Entretanto, isso não torna o corpo secundário: antes, confirma sua importância e a potencializa como elemento de conexão com a Espiritualidade. Eclipsado pela presença de um Ser de Luz que o manipula temporariamente, o corpo não desaparece, mas se ressignifica por manifestar não apenas a individualidade de seu médium no cotidiano, mas também múltiplas individualidades, que falam, aconselham, dançam, fumam e se valem de roupas e adereços diversos, reconhecido como ações e elementos espirituais, magísticos, litúrgicos e também identitários.


A saúde integral (holística) abarca corpo, mente e espírito. Nesse contexto, o corpo é considerado um templo onde habita a divindade interna (Ori) bem como assomam, por meios diversos, Orixás, Guias e Guardiões. O conceito de templo, aqui, não é de algo sacrossanto ou imaculado, mas se assemelha à estrutura de um terreiro, com múltiplos espaços hologramas dos pontos de força e de convivência festiva, social, comunitária. Dessa forma, o corpo-templo não apenas vivencia o que a dualidade apresenta como sagrado, mas também o profano, posto que concebido como elemento holístico. Sacraliza, assim, a vida cotidiana e seus gestos, que por si já são sagrados, ressignificando-os à luz da espiritualidade umbandista.


Na integração corpo-mente-espírito, no equilíbrio que traduz e significa saúde, nada é estanque ou isolado. Assim, a ritualística de fechar o corpo4 é, na verdade, uma forma de proteção tanto espiritual quanto física, ou ainda, mais espiritual que propriamente física. Vários são os registros a esse respeito, como nos seguintes pontos cantados:


Querem destruir o meu reinado

Mas Ogum tá de frente

Eu sou filho de Ogum

Tenho o meu corpo fechado

Eu sou filho de Ogum

Mal nenhum vai virar pro meu lado


Tenho meu corpo fechado

Xangô é meu protetor

Afirma ponto, meu filho

Pai de cabeça chegou


O primeiro é um ponto de Ogum; o segundo, um fragmento de um ponto de Xangô. A totalidade da proteção do corpo fechado, conforme aparece no primeiro ponto, destaca-se na consciência do reinado ameaçado e no fato de que, com o corpo fechado e a proteção de Ogum mal nenhum atingirá o “eu” do ponto cantado. Portanto, não se trata apenas de algo físico: parte-se do corpo, concentricamente, e a ele se retorna. Já no segundo ponto (fragmento), a relação entre corpo fechado e Pai de cabeça evidencia o caráter holístico da proteção, da ritualística: ter o corpo fechado é ter proteção espiritual do Orixá (“Senhor da Cabeça”), portanto é caminhar seguro tanto no físico quanto no espiritual e no emocional.


O registro mais comum do caráter holístico do corpo fechado na Umbanda e nas religiões tradicionais de terreiro de modo geral, contudo, tem origem católica: a Oração de São Jorge, comumente associado ao Orixá Ogum5:


Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge,

para que meus inimigos tendo pés não me alcancem,

tendo mãos não me peguem,

tendo olhos não me enxerguem,

nem pensamentos eles possam ter para me fazerem mal.

Armas de fogo o meu corpo não alcançarão,

facas e lanças se quebrem sem ao meu corpo chegar,

cordas e correntes se quebrem sem ao meu corpo amarrar.


A blindagem espiritual se traduz na materialidade do pensamento e das ações dos outros que não podem atingir aquele que reza e não será tocado na mente, no corpo e no espírito. O outro tem a liberdade (e o livre-arbítrio) de pensar e fazer o que deseja: aquele que reza reconhece isso e, no lugar de bloquear o livre-arbítrio, pede proteção e amparo. Dessa forma, o outro continua com seus pensamentos, olhos, pés, mãos, armas diversas, com a concretude de pensar e agir, contudo, a despeito disso, não atinge aquele que se blinda. A imagem do santo guerreiro (daí o sincretismo predominante com o Orixá Ogum) certifica o crente de sua coragem, independência e força espiritual, sem interferência na energia alheia, sem dela comungar e com respeito à individualidade e ao livre-arbítrio.


Respeitar o corpo em sua totalidade, materialidade e transcendência traduz a compreensão da importância da encarnação, do físico e, portanto, do corpo e tudo o que o abarca (sensações, experiências, força, fragilidade etc.). Dialeticamente, uma teologia e uma práxis que negue essa importância apenas a reforça, pois signifca a fragmentação da espiritualidade e a negação da experiência presente. A Umbanda dignifica o corpo ao lhe atribuir o protagonismo cotidiano, bem como o religioso e o litúrgico, vinculando-o à mente e ao espírito, em vez de fragmentá-lo como secundário, e mesmo desnecessário. Nesse contexto e sempre com respeito ao livre-arbítrio e às experiências pessoais, a Umbanda reconhece o corpo como manifestação concreta, visível e palpável do eu encarnado, como algo que é e transcende e que, em sua peculiaridade, não necessita oscilar entre as proibições moralistas e a permissividade objetificante, mas pode (e deve) existir e fruir. Em outras palavras, o corpo, na visão holística/umbandista, em vez de objeto de desejo, é sujeito de desejo. De todos os desejos.



1: O corpo é uma delícia em sua diversidade, e não apenas no modelo temporal e pseudorandômico vendido e comercializado como padrão pela sociedade de consumo.

2: A dignidade da vida e, portanto, do corpo não cessa com o óbito. Por essa razão, nos funerais, os cuidados não ocorrem apenas com o espírito, mas também com o corpo, em liturgias e encaminhamentos diversos, como enterros e cremações. Pelo mesmo motivo, não se pode aviltar um cadáver. Contudo, sob a lógica do “mas está morto (a) mesmo”, atinge níveis estratosféricos em ações individuais e coletivas, antiéticas, imorais e criminosas, como as reveladas no ano de 2020, quando médicos legistas combinavam em grupos de WhatsApp para violar cadáveres em ações que variam do voyeurismo à penetração propriamente dita.

3: Abordamos estes e outros aspectos com mais profundidade em “A Umbanda e a Espiritualidade no Terceiro Milênio” (Ed. Anansi, 2020).

4: O ritual de fechamento de corpo ocorre em situações e com ritualísticas e elementos diversos, contudo esse fechamento (proteção) não ocorre apenas nessas ocasiões, mas em outros rituais (firmezas, banhos etc.) cotidianos e mais constantes nas liturgias.

5: Na Umbanda, geralmente Ogum é sincretizado com São Jorge, enquanto nos Cultos de Nação, com Santo Antônio, contudo isso também varia conforme a região e o segmento.



Ademir Barbosa Junior - AxéNews

Ademir Barbosa Junior

Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]


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|| Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews.

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