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Mãe Flávia Pinto destaca a importância da Lei que cria data em homenagem às religiões de matriz afro

"É extramemente fundamental que sejam retomadas ações de construções de políticas públicas para as comunidades de terreiro..."

07/01/2023 | 18:30


O ano começou com uma boa notícia para os povos e comunidades de terreiro. O atual presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou o dia de celebração das tradições de matrizes africana e do candomblé. A lei foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) nesta sexta-feira, é assinado também pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, e pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.


Para comentar sobre este e outros assuntos relacionados, convidamos a socióloga, escritora, ativista pelos direitos humanos e do movimento negro, a matriarca da comunidade de terreiro afro-indígenada Casa do Perdão, Mãe Flávia Pinto.


Confira a entrevista!


AxéNews: O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou na última quinta-feira o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, cuja comemoração será em 21 de março. Como as nossas comunidades religiosas afro-brasileiras receberam esse ato do novo governo?


Mãe Flávia Pinto: Foi extramemente importante esse ato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reconhecer uma reivindicação antiga do movimento afro religioso, de termos um dia para celebrar. Naturalmente, por estar no início do mandato, trás maior visibilidade às primeiras ações de governo, e o presidente tomar essa atitude no início de sua gestão prova o seu compromisso em promover a liberdade religiosa, não estando mais a favor de uma religiosidade do que outra, mas governando para todas elas.


Para nós, povos de terreiro, é extramemente fundamental que sejam retomadas ações de construções de políticas públicas para as comunidades de terreiro, a exemplo do que existia no governo do próprio presidente, e da presidenta Dilma, como a SEPPIR (Ministério de Igualdade Racial), e a própria Fundação Palmares que desenvolveram vários projetos, alguns, incluvise, que foram interrompidos a partir dos processos políticos que ocorreram. Então, é importante a gente retomar essas parcerias, essas políticas públicas como a própria Conab, a distribuição de alimentos para gerar segurança alimentar às famílias atendidas pelos terreiros que são quilombos urbanos, assim como o intercâmbio entre as comunidades africanas, e a diminuição do custo da passagem aérea, que estava em construção, e, infelizmente, foi interrompido, mas temos certeza que agora com o presidente Lula nós iremos retomar esse acesso até a África a custos mais acessíveis para nós, povos de axé.


AxéNews: O dia 21 de março foi proclamado, em 1966, pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, em memória às 69 vítimas do massacre de Sharpeville, bairro negro da África do Sul. Ou seja, há um simbolismo e um recado muito grande na escolha dessa data. Quais efeitos esse recado poderá produzir em nossa luta contra a intolerância religiosa?


Mãe Flávia Pinto: É muito importante esse dia 21 de março, que tem a mesma data desse massacre em Sharpeville, e também de despertar um pouco as outras ações de intolerância religiosa, promovido por grupos radicais neopentencostais de nos respeitarem, entender que o Governo realmente mudou, e que agora não é prioridade a política discriminatória, mas a política de respeito e de igualdade.


Eu acho que o Brasil tem que falar cada vez mais do racismo religioso, entender que durante 400 anos o povo preto foi escravizado, e ainda se perpetua na cultura brasileira uma insistente demonização de tudo aquilo que é afro: a culinária, a comida, o samba e a religiosidade. É importante entender que esse país foi construido a partir dessa força de trabalho não remunerada, escravizada e torturada que é a comunidade preta, e temos como saldo as religões de matriz africana que foi e é um dos únicos lugares de cura para essa população. O que um terreiro faz é salvar e transformar vidas, e é importante que a nação brasileira reconheça as comunidades de terreiro como espaço de religiosidade sagrada e de cura para todas as questões existenciais que toda sociedade tem.



AxéNews: Estudos mostram que religiões de matrizes africanas são as que mais sofrem perseguições e violências no Brasil. Em uma entrevista recenete, a senhora afirmou que isso é fruto de um preconceito histórico. No entanto, segundo o autor da proposta de lei, sancionada pelo presidente, o deputado Vicentinho destacou que o Brasil celebra diversas datas cristãs e isso o levou a propor a criação de um dia voltado às religiões de matriz africana. A senhora acredita que com essa data podemos ter mais espaços ao nível de perseguição que sofremos?


Mãe Flávia Pinto: As datas nacionais são marcos referenciais, elas são importante porque traz o simbolismo de comemorações, e quanto mais vísiveis forem essas comemorações com atos públicos, sendo reproduzidos a nível de estado e municípios maior visibilidade a gente ganha e isso atrai um respeito maior.


É importante que nós, comunidade de terreiro, tenhamos esse entendimento para que a data realmente possa ter esse vigor de ser um instrumento potente na luta pela promoção da liberdade religiosa. Agora, se nós ficarmos de braços cruzados fica um pouco difícil. É necessário que a gente tenha cada vez mais a liberdade de ocupar as ruas com as nossas pertenças e práticas religiosas, assim como andar paramentado, assim como postar em nossas redes sociais, assim como conscientizar os filhos de axé, os médiuns de umbanda para que eles possam ter orgulho de se posionar como pessoas da religião porque isso faz uma diferença brutal. A política pública é necessária, mas é necessária também uma política interna que conscientize as pessoas de axé a manifestarem as suas expressões religiosas em ambientes públicos. Isso no meu entendimento ajuda muito a combater o racismo religioso.


AxéNews: Sabemos que muitas lideranças religiosas, como a senhora, estão engajadas na luta contra a intolerância. De que maneira as demais pessoas podem se engajar nesse desafio, que é coletivo?


Mãe Flávia Pinto: Primeiro é entender o cenário que a gente vive, e entender que se a gente não tiver uma atitude de defesa das nossas práticas milenares tradicionais possa ser que a gente um dia não possa mais praticar essa religiosidade dentro do Brasil. Por mais que algumas pessoas achem que isso nunca vai acontecer, é importante que a gente entenda que o crescimento neopentencostal radical, não são todos os evangélicos nem todos os neopentencostais, mas existe uma ala radical que tem como meta nos coibir e fazer com que a gente deixe de existir.


Agora, qualquer luta de grupos políticos que têm pontos de vista diferentes, ela só é neutralizada a partir do momento que o grupo que se sente vulnerável se organize e reaje, não com ataque de violência, mas reage reinvindicando seus direitos. Então, a gente precisa entender que voltou um governo que é sensível às nossas causas, e cabe as comunidades de terreiro cada vez mais capacitar, qualificar os seus filhos, a sua comunidade de axé para entender essas questões e saber como se defender, inclusive, históricamente, reinvindicando um direito, um lugar dentro dessa sociedade que é de direito nosso, que é um comum direito nosso, assim como os povos indigenas, assim como tradições católicas e evagélicas, que chegaram muitos anos depois, mas nós também chegamos. Não fomos convidados, viemos traficados, escravizados, roubados, roubaram a nossa dignidade, a nossa religiosidade, e nós conseguimos, mesmo escravizados, recriar um sistema religioso aqui no Brasil chamado Umbanda e Candomblé. Isso nós devemos ao sangue dos nossos ancestrais que morreram para que hoje pudesse existir Candomblé e Umbanda no Brasil. Então, em nome dessas pessoas que foram silenciadas e mortas nós não podemos permitir que nossa religião seja extinguida. É importante que a gente continue defendendo nosso direito de existir dentro das terras brasileiras.


AxéNews: Além de coordenar a Casa do Perdão, fundada em 1997, a senhora é também autora de diversos livros, entre eles ‘Umbanda Preta: raízes africanas e indígenas’, pela Editora Aruanda. Nesta obra, são apontas condições de defender nossa liberdade religiosa e nosso direito de existir como descendentes dos povos africanos e indígenas. Ocupar espaços na literatura brasileira contemporânea também pode ser um procedimento necessário enquanto resistência de nossos povos de terreiros?


Mãe Flávia Pinto: Sim, sou matriarca da Casa do Perdão, comunidade de terreiro afro-indígena, localizada em Campo Grande, e que tem um compromisso social muito grande, atualmente atendendo 30 famílias, oferecendo cursos gratuitos para a comunidade de seu entorno porque todo terreiro é um quilombo urbano, e atendendo duas unidades prisionais femininas.


A obra 'Umbanda Preta: raízes africanas e indígenas’ é o meu quarto livro, que acabou de ser lançado pela editora Aruanda, ele tem o compromisso de confrontar a ideia de uma umbanda branca, e apresentar um conceito teórico de uma umbanda preta, trazendo um processo de descolonização para dentro da umbanda, e de combate ao próprio racismo dentro das nossas práticas religiosas, que não significa desqualificar nenhuma outra cultura que esteja viva também dentro da umbanda, mas reinvindicar o direito do caboclo e do preto-velho que são ancestrais indígenas e africanos, e trazer os fundamentos dessas entidades, desses povos ancestrais como direcionadores das nossas práticas umbandistas.


Afinal de contas, alguém consegue conceber a ideia de uma umbanda sem preto-velho e sem caboclo? Eu também não. Então, é muito importante que a gente comece a entender melhor. No livro e nos cursos que eu dou, a gente orienta ferramentas para a gente poder combater a intolerância religiosa, e fazer das nossas práticas religiosas, práticas políticas, de defesa de promoção. Com isso, é importante que a gente conheça a nossa história para termos na ponta da língua as palavras corretas e nos defender.


AxéNews: Como a senhora prospecta os próximos anos para nossas religiões de matrizes africanas?


Mãe Flávia Pinto: Eu vejo os próximos anos de maneira positiva nesse novo governo, no outro governo seria impossível a gente até pensar em continuar existindo. Mas, eu tenho o entendimento de que é necessário também que nós possamos nos unir e solidificar pautas em comuns, não simplesmente puxar para um lado ou para o outro, mas intervir de maneira bastante direta e objetiva naquelas reinvindicações que são necessárias para a comunidade de terreiro, como por exemplo, legalizar os terreiros para que possamos acessar a equipamentos públicos, que geram ações sociais dentro do terreiro, como distribuição de cestas de alimentos para garantir segurança alimentar, reforço escolar, creche, serviços terapêuticos que podem ser usados nesses espaços de terreiros quando eles estão ociosos, as igrejas fazem isso. Nenhum templo é usado 24h, então naquele momento em que o templo tem um espaço ocioso, ele pode ser um braço do estado, através de uma parceria para que aquela comunidade usufrua daquele espaço como beneficiária de um programa social. Então, para isso é necessário a legalização. Isso é só um ponto, tem vários outros.


Cuidar da aposentadoria dos dirigentes religiosos, tudo isso é importante a gente pensar, na nossa sobrevivência e na nossa sustentabilidade. E o Governo que está ai e foi eleito por nós, vai, com certeza, dar as condições que a gente precisa, mas a iniciativa cabe a todos nós e a consciência de como agir também.

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