Por: Yakekere Katiuscia de Yemanjá
18/04/2024 | 18:19
Sim, o título é polêmico! E espero que ele tenha trazido vocês até aqui desejosos em ver o que havia estar escrito neste artigo.
Para além de uma provocação vazia, o intuito é fazer um convite para que nós possamos refletir o que temos feito com os muitos ensinamentos das comunidades tradicionais que tem ganhado palco numa sociedade que nunca quis ouvir os saberes de nossos antepassades negros, negras e indígenas.
No final de mês março, pude compor uma mesa sobre racismo ambiental em Brasília. Ali, no centro das decisões de poder nacional, um espaço que nem nos meus sonhos mais ousados, eu pensei chegar. Estar nesse lugar, como um corpo de comunidade tradicional, logo sendo representação desta identidade, me trouxe mais que uma responsabilidade sobre o que dizer, mas como o que havia de estar sendo dito se encontrava de fato com o que estamos praticando e sobretudo a dose de compromisso com uma mudança real para tão evocado futuro ancestral o qual temos clamado.
Rapidamente, me vieram a cabeça, os inúmeros discursos que enfervecem a discussão atual sobre natureza, preservação, crise climática e os rumos de nossa sociedade frente a essas questões. Junto deste flash, me lembrei da série de cartilhas, camisetas, broches, quadros, plaquinhas, ecobags com o lema do momento: Kosi Ewe, Kosi Orisa.
Eu vou aqui me arrogar a perguntar, o que é Kosi Ewe, Kosi Orisa nessa circulação e o que é para nós, comunidades tradicionais? Certamente, não estou falando de uma tradução que de fato não atenderia a todas culturas negras existentes, visto que Orixás compõem um grupo de ancestralidades que representam um território do continente africano, uma forma cultural negra existente na diáspora brasileira.
É indubitavelmente, sair do literal para a compreensão da importância desse legado, o que seria, portanto, sem folha, não há orixá?
É preciso com toda sinceridade entendermos que não estamos mais em um tempo-espaço onde a floresta reina majestosa sobre nossas existências. O mundo que o ocidente criou, um mundo de pedra e poder pelo capital, ensinou que haveria de ser civilizado moradas com torres gigantes, tais quais uma babel, onde viveríamos de comprar, consumir, trabalhar incansavelmente para comprar e consumir, ser consumido. Um mundo de apelo às individualidades, dividida em classes formadas logicamente por grupos raciais que se sobrepõem.
Um mundo de estéticas polidas, com cores neutras e culturas privilegiadas. Um mundo que expropria territórios, que tira pertença da terra e diz que você nascido ali com seu umbigo naquele chão, não tem direito a ele.
Aliás um mundo que fez os novos poucos donos de terra criarem jardins para aprisionar “todas” as espécies naturais possíveis aos seus olhos e poder. Ou vocês ainda não entenderam a lógica dos jardins botânicos e zoológicos, que hoje ganham o bonito nome de eco parques?
Parece um tanto anarquista a minha colocação, mas não é. É só uma singela observação sobre a construção de civilidade que se opõe ao lema que tantos querem colocar em leis, cartilhas e afins… o lema Kosi Ewe Kosi Orisa.
E vou novamente me (e te) questionar, mas o que seria mesmo Kosi Ewe Kosi Orisa?
Ter estado naquele espaço decisório de poder, na Câmara dos Deputados, junto a tanta gente que tem pensado sobre os assuntos do meio ambiente, realmente mexeu com minhas ideias. Fico aqui agora me questionando sobre nosso papel enquanto comunidade tradicional, e se iremos dar conta do assunto, apenas soltando nosso lema sem costurá-lo firme nas barras do nosso legado.
Quero dizer, novamente, com isso que por não estarmos na nossa selva particular e segura não dá para acreditarmos que o desenvolvimento desse legado deixou de sofrer com a ação civilizatória colonial, que não estamos sob outras bases de sociedade, uma que todos os dias vai contra o que tem nos alimentado todos esses anos.
Para ser mais objetiva, temos demandas urgentes como a presença de territórios tradicionais e florestas em espaços urbanos. Trazendo para a perspectiva que me significa, terreiros que não estão dentro de uma área mato, e não deixam de existir por isso. Mas a questão é como eles existem e que estratégias temos para preservar a relação deste corpo-terreiro com seu corpo-natureza frente a esta realidade.
Falando das florestas urbanas, como protegê-las? Pensando na especulação e no avanço imobiliário que tantas vezes as fazem desaparecer num estalar de dedos. Falar da relação dessa sociedade que vive a floresta e ao mesmo tempo precisa viver o direito a cidade, e mais, como essa cidade se agiganta e se sobrepõe a esses corpos que ocupam tal espaço. E não estou falando das casas de rico nos grandes parques protegidos pelo poder de quem afiançou um pedaço de natureza para si.
Mais uma vez, expor nosso lema Kosi Ewe, Kosi Orisa em cartazes e oralizações sem uma prática efetiva vai dar conta?
Acredito que até aqui algumas coisas tenham ficado mais claras sobre a minha angústia com a banalização conceitual muito típica do movimento embranquecido para com saberes que são caros para outras formas de viver. Natureza, o que é? Por que tanto se fala, quem tem acesso, quem tem direito a ser natureza?
Faremos revolução ecológica defendendo a tal sustentabilidade ambiental, tirando foto plantando árvore ou ainda recorrendo a política dos três, ou quatro, ou cinco R? E a educação por onde anda nesse ponto? Como as escolas estão preparadas para falar com o futuro que ali se preenche de educação formal, que currículo é esse que fala sobre natureza, clima…? Que forma de viver está ali privilegiada, é ainda a dos jardins e eco parques?
Parece que estou enchendo ainda mais de dúvidas toda a discussão, mas é por que não acredito que estamos levando com honestidade essa discussão tão cara para nós, e sobretudo quando se usa um legado que é o que nos deixou vivo até aqui.
Ossain é nossa cura! As folhas são. Sangue verde, ele é nosso alimento. Folha é ancestralidade, é elemento vivo mais antigo que nós, meros corpos novos que tem mania de achar que sabe que sabe.
Eu penso muito na peleja que é manter aceso, neste território aqui onde vivo, esse ideal de proteção à natureza, mesmo sendo um lugar de mata. É todo um movimento para resgatarmos culturas que essa sociedade nos tirou. Plantar não é apenas fincar nada na terra não, é alimentar e se alimentar, é lembrar de esquecer métodos práticos de uma vida do consumo, corrida, sem cuidados.
O Quintal das Pedrinhas Miudinhas todo dia renasce, há um ano a gente batalha para mantê-lo vivo, produtivo, sendo uma espaço de resgate e de educação ecológica ancestral para a comunidade. Um espaço de onde saem remédios, curas e axé. É dureza fazer a gente se livrar do automático desse mundão que nos ensinou a encher tudo com cimento, viver da farmacêutica ocidental, comer mal, atropelar o tempo!
Eu mesma preciso sair da ideia de uma brincadeira que hoje vejo que era real. Até o quintal chegar, eu vivia falando, gosto de planta que se cuida sozinha. Planta que precisa ser cuidada não dá para mim. E isso só tem a ver com modo de viver. Quando é que a gente tem o direito de cuidar da gente? Manter a natureza no seu lugar é mais que deixála, sabe. É também lembrar que somos ela.
Então, fica muito difícil a gente crer que nosso legado está apenas em reciclar, não jogar lixo no rio, em usar elementos biodegradáveis, em plantar espécies da moda, eventos, cartilhas… não que sejam desimportantes, mas não falam sobre o que de fato é Kosi Ewe, Kosi Orisa.
As ações em nome de um pensar sobre futuro ancestral, revolução ecológica, frear a crise climática tem a ver com mudança civilizatória, não com a continuidade de culpabilização das minorias. Tem a ver com tecnologia em nome de segurança alimentar, em direito ao território, incluindo as cidades, com salvaguarda da memória, com a mudança do currículo da educação formal, com transição energética, ou seja, com o combate ao racismo ambiental. E quantos de nós estamos inseridos no conhecimento das linhas desta discussão?
Precisamos ser críticos e compreender que muitas de nossas comunidades estão precisando retornar! Reconhecendo em nossas práticas tanto a memória da preservação quanto a da degradação. E aceitar que a transição não é fácil. Sobretudo, precisamos avançar com ouvidos nas discussões políticas vigentes, ou sempre ficaremos para trás lotando a gente de escrito que nunca sai do papel.
Enfim, o tema não é amistoso mesmo. Mas diz respeito a seguridade de nossas vidas, não pode ser mais um disparate conceitual vazio, repetitivo e sem efeito.
Ewé e ní asà ki ôjé, éwe jé si gbogbo
Orisa,
Ewé ki mo àsá ki o jé baba
Folha, você tem a tradição dos costumes do culto ao sagrado
Folha, você é para todos os orixás,
Folha que entende os costumes tradicionais e é o nosso pai.
Yakekere Katiuscia de Yemanjá
IYÁ Katiuscia de Yemanjá, mulher de terreiro, mãe, Yakekere do Rei Xangô, da família Òbá Labi, corpo-memória cabocla-nordestina ; forjada pela força e o afeto das muitas mulheres. “De anel no dedo e aos pés de Xangô”, mestre em linguagens pela UERJ, professora da educação básica pública e periférica, pesquisadora e defensora dos saberes ancestrais na diáspora. [+ informações de Yakekere Katiuscia de Yemanjá]
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