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Faces da ideia de desunião, o dilema racismo e a busca por Políticas Públicas pelas casas de axé

Por: Yakekere Katiuscia de Yemanjá

16/11/2023 | 18:29


Tratar dos direitos de populações que secularmente viveram e ainda vivem à margem das políticas públicas mesmo numa sociedade dita contemporânea é, sem dúvida, o maior desafio social para construção de lugares democráticos e plurais.




Falar em direitos para populações negras e sobretudo em políticas de preservação da história, da memória e da identidade desses corpos é nunca deixar de pensar que as bases legais e a estruturação de direitos partem da desumanização de um sistema escravocrata que fundamentou qual história deveria ser contada neste país.


A perspectiva do povo desunido começa lá atrás na roda do esquecimento, no portal que fazia atravessar corpos batizados pelo ocidente, que ao tirar nomes, expurgava identidades e pertencimento que se ligavam ao chão, à terra, à comunidade.


Separados, distinguidos e renomeados pelas interpretações que o homem branco colonizador tinha, não me esqueço da obra de Eliane Alves Cruz, Água de Barrela, onde Akin Sangokunle deveria ser esquecido para virar Firmino, por ser forte, firme e excelente para o trabalho braçal. E isso se tratando de um jovem africano de 15 anos sendo escravizado em terras Brasílis.


Alguns se destinavam às senzalas, outros a casa grande, outros separados ao tentar constituir família, remontando sua África tirada… resistir! E ainda pela obra de Eliane, vemos inscrito na não entrega de Sangokunle ao esquecimento, toda luta para o povo negro manter-se unido! Viver.


Mas o desejo exploratório e devorador do ocidente não descansa. Assim como os ferros que marcavam corpos intitulando-os como propriedade, a sociedade se formou dividindo, separando e principalmente deixando claro que alguns dentre os marcados conseguiriam supostos espaços, mas que, definitivamente, não era para todes, eu diria nem para os alguns.


E ainda sim, como brada Maya Angelou, “eu me levanto!”, e os núcleos de resistência a esse modelo cruel se impuseram, em silêncio, nas frestas das matas, às margens de quaisquer direitos, mas ainda sim “se levantando”.


As comunidades tradicionais não simplesmente nascem estruturadas nos modelos que vemos atualmente. Elas são frutos de muita tecitura de políticas públicas de origem interna, aquém do ocidente, mas partindo desse contraponto com a filosofia colonialista.


Terreiros nascem no meio das matas, entre mandingas, macumbas e magias desses corpos pretos e em luta pela vida. Desde sempre acolhendo, benzendo e curando os sofrimentos da desumanização, e buscando num movimento de coletividade e circularidade os tais direitos que só os senhores e senhoras tinham.


Mas enfim, o que o avançar do tempo traz a essas comunidades de fato?


Numa Conversa com minha Iyá Babá Soumim, Acidália dos Santos, eu ouço coragem para prosseguir na busca por políticas que ainda estão muito distantes de nós, ao mesmo tempo que ouço histórias incríveis de resistência dessa comunidade fundada em 1948 por Iyá Ilka de Balé, que até delegado enfrentara, com seu eterno ancestral Barabô. Mas que minha mãe, ao assumir, não quisera efetivamente lidar com o mesmo enfrentamento de sua matriarca.


Isso me coloca e deveria nos colocar num ponto de pensamento sobre as resistências!

Quantos julgamentos, nós de terreiro, casas de axé, ou centros que mantém a religiosidade trazida pelos corpos negros, recebemos quando não estamos investidos num ativismo político social que de fato é totalmente moldado pelo ocidente?


Quantas casas de orixás, inkisses, voduns e encantados são efetivamente apontadas por não ter uma atividade “política”? Eu acredito que esse discurso ainda é fundamentalmente pautado no fazer política que precisa ser ocidentalizado, mas ao mesmo ponto ouvindo aqui, vivendo ali, observando acolá, tenho construído uma compreensão a partir do que o Babalorixá Pai Thiago de Xangô do Terreiro Òbá Labí traz, que é a existência do que iremos conhecer como Egbé e a outra como Ilê Axé puramente, ou seja, as casas de culto, os centros religiosos.


A Egbé é essencialmente a sociedade africana reestruturada no formato afro-brasileira, em que vidas não só rememoram ancestralidades, mas se organizam como uma pequena África, e efetivamente nestes espaços-memória-quilombos não há como fugir o peso da luta por políticas públicas, pois se trata de uma sociedade afro-referenciada e suas identidades não admitem a estratégia de serem devoradas.


Os Ilês Axé, os centros religiosos, as casas de culto, optaram pela estratégia de manter uma memória do culto em si, reverberando e atuando como puramente religião. E talvez aí soe o sentido que elas não se comprometam com a construção de políticas públicas, o que ao meu ver é totalmente injusto de ser dito. Acredito que há políticas ali que podem não extravasar e muitas vezes, sim, silenciar o discurso de consciência, mas que há resistência há!


As sacerdotisas e os sacerdotes que se atrevem a laçar-se no jogo de lobos da política externa, pois isso efetivamente é urgente para nosso avanço enquanto povo de terreiro, se colocam em um lugar terrivelmente cansativo e estafante. Quando falamos das mulheres então, estamos apontando todo tipo de dificuldade, incluindo o machismo institucionalizado.


Se falarmos de lideranças de terreiro negras vamos avançar numa discussão que neste artigo não daria conta - o racismo apaga inúmeros corpos negros da busca por políticas, aí de nós se não fosse Exú e suas pedras lançadas. Conseguir uma escuta respeitosa, e a incisividade de nossas propostas, nos colocar representados em conselhos tão dominados pelo cristianismo, conseguir de fato que um caso de racismo religioso seja de devidamente punido com a lei já diz… eis alguns dos desafios, como disse, é tema para outros e outros artigos.


“Mas vocês são desunidos!” Essa é a fala que mais escutamos. Por toda uma vida não nos deram nem uma brecha! Hoje é aberto uma fresta de porta que deixa passar uns poucos e quase todos “ficam para traz”, mas a tarefa de quem passa não é cerrar a porta! É segurar miudinho para que outros e outras e outres continuem passando.


Será que somos desunidos, sem consciência política, sem vontade de mudar ou é só o racismo trabalhando para a memória negra não invadir e rasgar a infestação colonialista deixada por aqui?


Nossos e nossas antepassadas não tinham o direito de falar, com estratégia, trouxeram corpos legitimados para falar sobre nós, fizeram-nos chegar, ser recebidos e estar a duras penas escrevendo sobre nós ainda que tenhamos de justificar nossos dizeres pelos deles. Nossa tarefa é continuar e produzir para que cheguemos com nossas políticas validadas pelas nossas reais necessidades.


E sim, não faremos política sozinhos! Uma rede é necessária. Tampouco um discurso único sobre todos nós é cabido. Somos muitos e não há problema algum sobre isso, temos múltiplas necessidades, mas todas com o mesmo fecho: viver e ser respeitado.


“Em uma madrugada que é maravilhosamente clara

Eu me levanto

Trazendo os dons que meus ancestrais deram,

Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.

Eu me levanto”.





Katiuscia de Yemanjá - AxéNews

Yakekere Katiuscia de Yemanjá

IYÁ Katiuscia de Yemanjá, mulher de terreiro, mãe, Yakekere do Rei Xangô, da família Òbá Labi, corpo-memória cabocla-nordestina ; forjada pela força e o afeto das muitas mulheres. “De anel no dedo e aos pés de Xangô”, mestre em linguagens pela UERJ, professora da educação básica pública e periférica, pesquisadora e defensora dos saberes ancestrais na diáspora. [+ informações de Yakekere Katiuscia de Yemanjá]



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