Por: Joana Bahia
09/03/2024 | 20:15
O Brasil tem desempenhado um papel central na nova geografia transcendental. Se, por um lado, muitos brasileiros levam suas práticas culturais e religiões aos países para os quais migram, por outro muitos europeus de distintos países e nacionalidades têm buscado no país um lugar de know-how do sagrado. A proliferação de fluxos religiosos multidirecionais e multiescalares que tanto partem quanto chegam ao Brasil inclui grupos religiosos tão diversos como candomblé, umbanda, santo-daime, pentecostalismo e neopentecostalismo, assim como práticas culturais como samba e capoeira. Todo esse processo transforma o país em um dos maiores atores na nova geografia religiosa global. Muitas religiões se movem, ultrapassando fronteiras, reelaborando centros e periferias do mapa-múndi e evidenciando o Brasil como fonte pós-colonial da globalização das práticas espirituais.
Desde os anos 1960, a prática e a expansão das religiões afro-brasileiras na América Latina em países como Paraguai, Venezuela, Uruguai e Argentina. A partir dos anos 1970, estas cruzam o Atlântico e se expandem por Portugal, encontrando-se hoje na Espanha, Reino Unido, Bélgica, Itália, França, Alemanha, Áustria, Suíça, EUA, Rússia (jogo do ifá) e Japão (umbanda). Temos umbandas, quimbandas, candomblés, juremas, ifás e outras modalidades religiosas.
Espíritos criativos, adaptações e improvisos fazem parte da transnacionalização religiosa. Há também improviso de várias ordens, como no uso e na adaptação de materiais (fabrico próprio de cerâmicas de barro) e no plantio e na diversificação do uso de ervas, que quase sempre não se acham na natureza de países (a exemplo Alemanha, Áustria e Suíça), na versatilidade de buscar alimentos no comércio asiático, e de importar de vários modos o que não se adapta, como é o caso do azeite de dendê.
Viagens com objetos para a prática dos rituais, os preços elevados dos objetos rituais na Europa, e festas para um orixá que coincide com o período de inverno são algumas das dificuldades descritas pela maioria dos adeptos da religião. Há também grande dificuldade na feitura dos despachos em áreas públicas, principalmente por causa das atitudes dos europeus com relação a essas práticas religiosas. Muitos chamam a polícia ou mesmo cobram explicações sobre o uso do espaço público, bem como quanto à intervenção na natureza. Além desses problemas, há ainda o clima de cada país, as vezes com muita neve e gelo, o que dificulta a realização de trabalhos que necessitam do uso dos elementos da natureza. Apresentar a comida para espíritos e orixás é mais aceitável se falsamente “esquecida” na grama, pois sua bela estética agrada tanto os deuses quanto os frequentadores do parque. Os modos de ariar as oferendas, os horários e locais passam a ser melhor escolhidos com a maior experiencia adquirida pelo adepto.
Apesar da dificuldade no aprendizado das técnicas corporais, muitos europeus se aproximam da religião buscando compreender o próprio corpo e as emoções advindas do contato com essas práticas religiosas. Muitos vivenciam os processos de mudança de vida a partir das mudanças corporais. Há novas interpretações sobre mediunidade e também mal entendidos, pois o arcabouço esotérico (Reiki, tarot, meditação etc.) presente na cultura europeia é muitas vezes a base de compreensão dos europeus dos processos religiosos afro brasileiros.
A conversão não é uma passagem automática de um sistema de crenças a outro, mas pensada como um esforço constante de reinterpretação das experiências de vida sob a lógica interna do novo sistema de crença. Arnaud Halloy estudou um terreiro de candomblé de caboclo na Bélgica e mostrou o caso de uma divindade da floresta, de origem eslava ou galesa, que possui o pai de santo e as tentativas de adequação das entidades do mesmo terreiro às divindades locais.
Além dos europeus, temos latino-americanos que buscam suas heranças espirituais familiares, e descendentes de africanos, ou nascidos em África que retornam a Europa, como é o caso de muitos portugueses que buscam uma reconexão com a ancestralidade. Numa entrevista feita na Alemanha, um dos brasileiros além de fazer sua ritualística à beira do Rio Danúbio, também auxiliava seu amigo venezuelano a cultuar Maria Lionza (culto que reúne tradições espíritas, indígenas e afro americanas), que é universal, sendo importante não apenas no contexto venezuelano. Atualmente, há uma reinvindicação de patrimônio religioso na Unesco, existindo praticantes na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa. Conviver com uma clientela parte latina, parte caribenha faz com que meu entrevistado reviva sua identidade diaspórica de outros modos, cultuando elementos próximos ao universo religioso e trazendo os cultos e as oferendas de seus espíritos e deuses.
O modo como as religiões dos orixás se expandiu nos leva a pensar em um fenômeno em rede, que conecta diversas geografias do chamado Atlântico afro religioso, trazendo riqueza, complexidade e tensões entre as diversas formas de construção dessas culturas afro diaspóricas. Sacerdotes e praticantes viajam não apenas entre diferentes modos de pensar diferentes códigos culturais de diversos territórios adaptando (ou não) as suas práticas rituais de modo inovador, mas também viajam pelo WhatsApp, e redes sociais que também os possibilitam ser tornarem “irmãos de santo”. Local e global andam juntos nessa expansão religiosa.
Pesquiso esse tema desde 2009, e a bibliografia é extensa, para começar indico: Oro, Ari Pedro. Fluxos transnacionais. Brasília, Aba publicações. Tribo Ilha editora, 2024. https://portal.abant.org.br/aba/publicacoes/publicacao-561944
Joana Bahia
Professora titular da UERJ. Coordenadora do Nuer (Núcleo de estudos da religião). Autora do livro O Rio de Iemanjá: um olhar sobre a cidade e a devoção, publicado pela editora telha em 2023 e vários artigos sobre religiões afro brasileiras, em especial Omoloco, umbanda, candomblés, Iemanjá e expansão das religiões afro brasileiras no mundo... [+ informações de Joana Bahia]
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