Por: Joana Bahia
23/06/2024 | 18:18
“Santo Antônio pequenino, amansador de burro bravo, quem mexer com tranca rua, ou tá doido, ou tá danado”. “Santo Antônio de batalha, faz de mim batalhador. Santo Antônio de batalha, faz de mim batalhador. Corre gira pombo gira, tranca rua e marabo”. “Santo Antônio pequenino não me deixa andar sozinho, Santo Antônio pequenino não me deixa andar sozinho, auê meu Santo Antônio bota exu no meu caminho”. “Santo Antônio pequenino, amansador de burro bravo, amansa meus inimigos pra que eu durma sossegado. Rodeia, rodeia, rodeia meu Santo Antônio rodeia”. “Santo Antônio de pemba caminhou sete anos a procura de um ano, até que encontrou. Mas como caminhou meu pai, mas como caminhou meu pai..”. “Pisei na pedra, a pedra balanceou. Se Ogum destrava tudo, Santo Antônio endireitou.
O que seria de mim, meu Deus sem a fé em Antônio canta Maria Betânia e muitos devotos por todo o país desde o período colonial. A fé em Santo Antônio é muito viva no Brasil, pontos cantados e frases citadas acima são comuns no imaginário religioso brasileiro, no cancioneiro popular, e nos terreiros, e nos faz pensar não apenas no caminho do catolicismo e dos vários modos de se pensar ou ser católico, mas também os vários modos de ser umbandista ou mesmo afro religioso.
A crítica ao sincretismo tem sido discutida nos circuitos afro religiosos como sendo uma revisão necessária a ideia de que a crença afro religiosa não pode simplesmente ser subsumida dentro de outra, numa necessidade de se pensar fora do modo colonial. Descolonizar o pensamento, se tornou palavra de ordem.
Porém as influências são mútuas, católicos são tão influenciados quanto umbandistas, a ideia de que uma crença se submete a outras sem conflitos, sem mudanças ou construções de camadas de complexidade simplesmente não existe. O mundo mágico, é bricoleur, um caleidoscópio em que suas partes mudam de posição e formam novas figuras cada vez que giramos.
Para outros grupos afro religiosos, o sincretismo é relido como ponto de ligação ao catolicismo já existente em África, e de que modo essas conexões religiões se imiscuem a religiosidade popular brasileira, e aos cultos afro religiosos. Essa presença, não significaria impureza, ou submissão, mas um cosmológico forjado nos processos históricos e nos trânsitos religiosos.
Acho o conceito de sincretismo velho, pois o campo de estudos da religião tem muitos conceitos novos, e tão desafiadores quanto a própria realidade observada. Porém acredito que a ideia de mútuas influências pode trazer uma leitura mais original do que seriam nossas religiosidades. Duplas devoções, trânsitos religiosos e formas de criar movimento no campo religioso, mostra o quanto não se tira Santo Antônio dos terreiros de um dia para o outro, e nem exu do dia a dia dos católicos. Se há terreiros que mostram que Santo Antônio não é exu, em especial a reivindicação de pureza dos candomblés e alguns segmentos afro religiosos, porque_ certamente_ Santos e orixás não são iguais, ou não devem ser misturados. Para outros segmentos tanto exu quanto Antônio são social e historicamente construídos, e ganham novas materialidades, transformando Antônio feito em madeira de lei, quase numa figa. Ou quem sabe, num grande feiticeiro.
O poder de oguns e exus estão ao lado de Antônio, assim carinhosamente chamado pela nossa devoção católica popular que nunca se submeteu as intempéries romanas. Lembramos das devoções populares que chamam o nome do santo com intimidade, como se fosse parente, e trazendo a devoção na hereditariedade familiar, dando nome aos filhos, e dos milhares de altares populares nas casas, botecos brasileiros, que adoram chamar um santo de seu. O santo tem nome e sobrenome, e ainda ajuda a casar, desencalhando milhares de brasileiros seja aqui ou mesmo em Portugal.
Quando estudei candomblés e umbandas nas terras lusitanas, escrevi Exu na Mouraria mostrando que os terreiros de umbanda estavam a mil por hora com as giras de exu nos períodos das festas de Santo Antônio. Alguns candomblés tocavam, separadamente suas umbandas, pois cuidavam dos espíritos dos seus filhos e dos seus. Até mesmo nas famosas sardinhadas de Lisboa, a festa popular realizada anualmente nos Bairros da Graça e Alfama, muitos santinhos são vendidos, sendo as sardinhas, por excelência, a comida não apenas portuguesa, mas que evoca uma das lendas do santo. Não apenas a biografia, mas em especial os milagres, contribuem para a construção da tradição de um santo, pois é a partir deles [milagres] que vemos como sua reputação se constrói, percebendo os poderes que lhe são socialmente atribuídos, que, com suas sofisticadas técnicas de pregação, podem converter pessoas e desafiar a ortodoxia religiosa (MENEZES, 2004).
Nos pontos riscados, linhas e imagens construídas nos conectam com o sagrado, e nos levam a sofisticada cosmologia bantu. Ultrapassando os limites arte e religião, e nos transportando a outro mundo. Antônio pequenino achou sua pemba, e aprendeu a riscar o chão, trazendo com seus pontos riscados e cantados proteção, caminho, trabalho vencendo a demanda, e assinando seu nome nesse mundo, e com seus riscados contando as suas histórias.
Sugestões de leitura:
BAHIA, Joana. Exu na mouraria: a transnacionalização das religiões afro-brasileiras e suas adaptações, trocas e proximidades com o contexto português, MÉTIS: história & cultura –v. 14, n. 28, jul./dez, p111-131, 2015.
NOBRE, Lígia Velloso. terra-chão em movimento ponto riscado, arte, ritual. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA-USP) para obtenção do título de Doutora em Estética e História da Arte. São Paulo, 2019.
MENEZES, R. de C. A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ed. da UFRJ, 2004.
SOLERA, O. O. O. A Magia do Ponto Riscado na Umbanda Esotérica. 95f. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014.
Joana Bahia
Professora titular da UERJ. Coordenadora do Nuer (Núcleo de estudos da religião). Autora do livro O Rio de Iemanjá: um olhar sobre a cidade e a devoção, publicado pela editora telha em 2023 e vários artigos sobre religiões afro brasileiras, em especial Omoloco, umbanda, candomblés, Iemanjá e expansão das religiões afro brasileiras no mundo... [+ informações de Joana Bahia]
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