Por: Ana Paula Mendes de Miranda
27/05/2024 | 16:45
A ausência de uma publicação oficial no Brasil sobre as violações dirigidas aos terreiros é uma reclamação constante que sinaliza a necessidade de uma busca por outras fontes de informações, já que a base da construção de políticas públicas são os indicadores.
No caso do racismo religioso há levantamentos esparsos feitos por alguns órgãos públicos ou por pesquisadores, mas nenhum permite uma sistematização que possa ser um termômetro da violência por causa étnico-racial-religiosa.
Há um relatório produzido pelo Pew Research Center, situado em Washington (EUA), que busca analisar os padrões mundiais de conflitos envolvendo a religião, motivados por restrições impostas por governos ou referentes às hostilidades cometidas por indivíduos e grupos sociais. Esse estudo abrange 198 países, que englobam mais de 99,5% da população mundial.
O centro categorizou e analisou dados de distintas fontes transnacionais publicadas, buscando fatos documentados, de modo a produzir elevada confiabilidade em seus resultados. Os pesquisadores do Pew Research Center não trabalham com opiniões ou comentários para produzir este relatório, que pode ser acessado, em inglês, aqui: https://www.pewresearch.org/religion/feature/religious-restrictions-around-the-world/.
Desde 2007 os relatórios nos permitem ter um panorama comparativo de como aos diferentes países, que podem ser regimes democráticos ou autoritários, lidam com a diversidade étnico-racial e religiosa. Parte-se do pressuposto que não há um lugar sem conflitos, mas que a gravidade varia em função do lugar e do tempo.
O objetivo dos índices produzidos é construir medidas quantificáveis, objetivas e transparentes sobre até que ponto os governos e grupos sociais interferem na prática da religião, bem como isso tem evoluído ao longo do tempo, em termos de generalização e a intensidade em cada país.
Em tradução livre poderíamos chamá-los de Índice de Restrições Governamentais (IRG) e Índice de Hostilidades Sociais (IHS). Ambos funcionam numa escala de zero a 10, com o zero indicando níveis muito baixos, de restrições governamentais à religião ou de impedimentos às crenças e práticas religiosas, e 10 indicando níveis muito altos.
Quadro 1: Escala do Índice de Restrições Governamentais (IRG) e do Índice de Hostilidades Sociais (IHS)
Analisando os dados referentes ao Brasil encontramos o seguinte cenário. No ano de 2007 o país estava classificado como de baixa conflitividade, social e governamental. A partir de 2008 o cenário passa a ser diferente com o crescimento da conflitividade social, considerada como moderada, com baixa restrições governamentais, o que perdurou até o ano de 2016.
Em 2017 a conflitividade social passa a ser considerada alta, o que se mantém até os dados de 2021, e as restrições governamentais se tornam moderadas a partir de 2019, tendo seguido assim até 2021, último dado divulgado.
Tabela 1: Conflitividade social e restrições governamentais motivadas por religião no Brasil (2007-2021)
Para dar uma dimensão dos problemas que o Brasil tem passado, olhemos os quatro países da América com os dados mais altos. Pode-se perceber que estamos em 3º lugar em termos de conflitividade social e restrições governamentais.
Tabela 2: Maiores índices de conflitividade social e restrições governamentais motivadas por religião nas Américas (2021).
Quando se pensa em conflitos étnico-raciais-religiosos, logo se pensa no Oriente Médio, por conta dos conflitos armados e das guerras que afetam a região, que se relacionam diretamente com questões religiosas.
O último relatório divulgado em 2022 indicou quatro países – Afeganistão, Egito, Paquistão e Síria – como aqueles que registaram níveis “muito elevados”.
Tabela 3: Maiores índices de conflitividade social e restrições governamentais motivadas por religião no Oriente Médio/Norte da África (2021).
Mas quando olhamos os dados referentes aos quatro países da Europa, com os maiores índices, vemos que a nossa situação não é muito distinta, com exceção da França que está em alto nos dois índices.
Tabela 4: Maiores índices de conflitividade social e restrições governamentais motivadas por religião na Europa(2021).
Para que servem esses números? Tal qual um termômetro serve para indicar o nível da febre, os índices servem para mostrar o agravamento dos conflitos, possibilitando que a sociedade e o governo possam buscar soluções para administrá-los. No caso do Brasil, o alerta amarelo surgiu em 2008, quando começou a proibição de cultos em favelas do Rio de Janeiro por parte dos autodenominados “traficantes evangélicos”. O alerta vermelho acendeu em 2017, quando os terreiros da Baixada Fluminense foram alvo de ataques, nos quais os religiosos foram obrigados a destruir seus próprios objetos sagrados e filmados durante a destruição. As imagens mostraram ao mundo aquilo que os religiosos já vinham sofrendo faz tempo.
É possível, portanto, afirmar que os índices produzidos pelo Pew Research Center estão em consonância com os resultados de pesquisas brasileiras, bem como das mobilizações e manifestações de lideranças afrorreligiosas que apontam como as violências têm se agravado e ampliado no país. Falta agora a ação de governos, sob a forma de proteção por meio de políticas públicas, para evitar que cheguemos no alerta roxo!
Ana Paula Mendes de Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.
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