A patrimonialização das religiões de matriz africana no Brasil: preservação cultural ou violação dos segredos sagrados?
- WR Express
- 18 de set.
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Por: Adriano Cabral

✅ 18/09/2025 | 18:03
Resumo
Neste breve artigo, proponho uma análise crítica da patrimonialização das religiões de matriz africana no Brasil, questionando seus alcances e limites. A reflexão central que atravessa este estudo é a seguinte: até que ponto a patrimonialização constitui uma estratégia eficaz de preservação cultural e reparação histórica, e em que medida ela se converte em uma violação dos segredos sagrados (orôs) que estruturam essas tradições? Para desenvolver esta análise, parto de uma contextualização histórica sobre a perseguição e marginalização sofrida por essas religiões, passando pelo reconhecimento das políticas culturais e patrimoniais implementadas nas últimas décadas, até os dilemas éticos e epistemológicos que emergem no tensionamento entre memória, segredo e exposição pública. Argumento que a patrimonialização,
embora se configure como avanço político e cultural, não está isenta de contradições, sobretudo quando ameaça a autonomia simbólica das comunidades de terreiro.
Palavras-chave: patrimonialização; religiões afro-brasileiras; segredo;
orô; patrimônio imaterial.
1. Introdução
Nos últimos anos, percebo a intensificação do movimento de patrimonialização das religiões de matriz africana no Brasil, conduzido por instituições estatais como o IPHAN, mas também por setores acadêmicos, organizações internacionais e pelas próprias comunidades religiosas. Esse movimento se apresenta como reconhecimento cultural, como resposta histórica a séculos de perseguição e marginalização. Entretanto, levanto uma questão que considero essencial: será que patrimonializar não implica, de alguma forma, uma violência simbólica sobre essas tradições, na medida em que expõe publicamente segredos que só têm sentido dentro da lógica ritualística e iniciática?
Como observa Edison Carneiro (1991, p. 42), ―o segredo, nos cultos afro-brasileiros, não é apenas convenção: é a garantia da eficácia do rito‖. Essa citação ilumina uma tensão central: ao se converter em patrimônio, o que deveria permanecer restrito à comunidade de culto pode ser traduzido em linguagem documental, audiovisual ou museológica, correndo o risco de perder sua potência sagrada.
2. Contexto histórico: repressão e resistência
O processo de patrimonialização só pode ser compreendido à luz de uma longa trajetória de repressão. Durante o período escravocrata e pós-abolição, práticas religiosas de origem africana foram sistematicamente criminalizadas e associadas à ―feitiçaria‖ ou ―curandeirismo‖, enquadradas no Código Penal de 1890. Terreiros eram invadidos, objetos sagrados apreendidos e líderes religiosos perseguidos.
A imprensa do início do século XX reforçava tais estigmas. Autores como João do Rio (1904), ainda que registrassem as práticas afro-brasileiras, frequentemente as escreviam com exotismo ou preconceito, reduzindo-as a ―superstições‖. É somente a partir da segunda metade do século XX, com o fortalecimento dos movimentos negros e a atuação de intelectuais como Roger Bastide (1971), que as religiões afro-brasileiras passam a ser vistas não apenas como práticas religiosas, mas como patrimônios culturais da nação.
Nesse sentido, a patrimonialização representa um gesto de reparação simbólica, como aponta Sodré (1988), mas não sem ambiguidade: ―o risco é que o que antes era perseguido agora seja capturado pelo Estado sob a lógica do espetáculo cultural‖.
3. O segredo (orô) como fundamento da sacralidade
Um dos elementos centrais das religiões de matriz africana é o segredo – o orô –, que estrutura a própria experiência do sagrado. Como destaca Renato da Silveira (2006, p. 133): ―O segredo não é simples ocultação: é modo de preservar a potência ritual, de garantir que o axé não se dissipe diante do olhar profano.‖ Esse aspecto coloca em evidência a incompatibilidade entre a lógica interna das religiões afro-brasileiras e a lógica do patrimônio cultural. Enquanto os terreiros operam pelo resguardo, pelo silêncio e pela iniciação gradual ao conhecimento, a patrimonialização opera pelo registro, pela exposição e pela acessibilidade pública.
Essa tensão não é meramente teórica: muitos rituais, cânticos e objetos sagrados, quando expostos fora do contexto ritual, perdem seu sentido espiritual, tornando-se meros ―artefatos folclóricos‖. É nesse ponto que emerge a crítica mais contundente: a patrimonialização, se não respeitar os limites do orô, pode equivaler a uma nova forma de violação, distinta da repressão policial, mas igualmente desestruturante.
4. Patrimonialização: reconhecimento e risco
A patrimonialização trouxe ganhos inegáveis. O reconhecimento do Samba de Roda do Recôncavo Baiano (2005), da Capoeira (2008) e das expressões afro-brasileiras como patrimônio imaterial foi acompanhado de recursos para preservação, fortalecimento de identidades e promoção de políticas públicas voltadas às comunidades.
Entretanto, os riscos também são evidentes. O registro audiovisual de rituais, a musealização de objetos sagrados e a espetacularização em eventos culturais produzem deslocamentos simbólicos. Como alerta Barbosa Neto (2012, p. 88):
―Transformar o sagrado em objeto de museu é sempre um gesto ambíguo: protege-se a memória, mas retira-se o segredo de seu contexto ritual.‖
Essa ambiguidade divide opiniões: enquanto alguns líderes religiosos defendem a patrimonialização como ferramenta de resistência, outros a percebem como uma forma de profanação institucionalizada.
5. Dilemas éticos e epistemológicos
Os dilemas que emergem desse processo não são apenas práticos, mas também éticos e epistemológicos. Birman (1995, p. 21) ressalta que ―o segredo é condição de possibilidade do sagrado‖. A patrimonialização, ao desvelar segredos, corre o risco de reduzir o sagrado a espetáculo ou folclore.
Ademais, há uma questão de poder envolvida: quem decide o que pode ou não ser patrimonializado? Frequentemente, são agentes externos — o Estado, a academia ou instituições culturais — que assumem o papel de mediadores, reproduzindo assimetrias históricas e colocando em segundo plano a autonomia das comunidades religiosas. Esse aspecto remete a uma crítica pós-colonial: o risco de transformar a patrimonialização em uma forma de colonização cultural renovada.
6. Considerações finais
Minha reflexão me leva a uma conclusão paradoxal: a patrimonialização das religiões de matriz africana é, ao mesmo tempo, conquista e ameaça. Conquista, porque representa reconhecimento, financiamento e valorização de tradições historicamente estigmatizadas. Ameaça, porque pode violar segredos, esvaziar o sagrado e reduzir o axé à lógica do espetáculo. Defendo, portanto, que qualquer processo de patrimonialização deve ser conduzido com protagonismo absoluto das comunidades de terreiro, respeitando protocolos internos de segredo e estabelecendo limites claros ao que pode ser revelado. Preservar não pode significar profanar: a verdadeira patrimonialização só é legítima quando reconhece que o silêncio também é uma forma de memória e que o orô é parte constitutiva da sacralidade.
Referências
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Nacional, 1971.
BARBOSA NETO, José. A tradição oral e o patrimônio imaterial nas
religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo: Brasiliense, 1995.
CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.
RIO, João do. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Garnier, 1904.
SILVEIRA, Renato da. Segredos guardados: orixás na alma brasileira.
Salvador: Corrupio, 2006.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira.
Petrópolis: Vozes, 1988.

Adriano Cabral
Dr. h. c. Luiz Adriano Santos Cabral (Adriano Cabral) é filósofo formado pela UCP Petrópolis; MBA em Administração Pública; Pós graduado em docência de Filosofia e Teologia; Primeiro secretário da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa da OAB 22° Subseção Magé/ Guapimirim... [+ informações de Adriano Cabral]
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