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A fração de Estado como resultado do racismo

Por: Jefferson Arouche

Foto: Getty Images

11/02/2024 | 14:59


O Estado

Estado - palavra polissêmica e muito polêmica no sentido político-, que consiste em “território, população, cultura, constituição e soberania”. Essa estrutura administrativa já chamada inclusive de Leviatã por Hobbes é justamente o oxigênio da soberania e resulta do Poder Político, arquitetado pela sociedade organizada. Segundo o pensamento hobbesiano, o homem é um ser que procura incessantemente pelo “poder” e se distingue dos outros animais pela razão, sendo assim, está sempre em movimento por motivos diversos; o desejo de conhecer e o porquê e, pela religião sob objeto de temor e respeito. Se o homem é o lobo do homem” e para provocar o direito de igualdade foi necessário abdicar do “direito absoluto” e criar uma conjectura de proteção ao individuo, a grande reflexão está na pergunta: Qual o motivo da desigualdade social?




1. A Desigualdade Social

A desigualdade social é mais antiga que próprio Estado, por consequência da necessidade sem medidas do homem na busca do poder e ambição pessoal fazendo crescer sentimentos sociais disseminados pelo ódio e, sempre alicerçados por conceitos religiosos no escopo de subjugar e pacificar revoltas. A Igreja Católica teve, por exemplo, grande culpabilidade na Revolta Puritana – onde foi redigida a única constituição republicana inglesa em 1645 – pois os absolutistas tinham verdadeiros contratos com os mesmos. Esse expoente religioso já mostrava a relação nada saudável entre monarcas e súditos. Todavia, se existe o pacto voluntário onde o direito natural de cada um será representado pelo Estado, à livre manipulação desse estratagema jamais deveria ser operada de maneira tirana ou totalitária.


A flexão histórica que descreveu à humanidade a necessidade da liberdade e equilíbrio na gestão estatal tomou corpo em 1789 com a Revolução Francesa e o iluminismo. Montesquieu disse: “O amor pela república numa democracia, é o amor pela igualdade”. Porém bem antes do lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, durante o início do século XVI, em 1535, o primeiro navio negreiro chegava ao Brasil iniciando uma história de 353 anos de torturas que não acabaram em 13 de maio de 1888.


Os portugueses ao colocarem os pés no Brasil, encontrando cerca de oito milhões de indígenas – aproximadamente cinco milhões estavam na Amazônia- e, com o mesmo objetivo de Pizarro que chegou à Colômbia achando que seria a terra do ouro e na verdade era da prata, perceberam que as riquezas naturais seriam extremamente lucrativas em todos os sentidos, mas o caos deveria acontecer para enriquecer outros muitos. O primeiro resultado da Desigualdade Social no Brasil foi à quantidade absurda da mortalidade dos índios, cerca de 80% da população até 1576 (logo após a ratificação das sesmarias). Nesse ínterim o comércio negreiro já estava em alta e muito lucrativo, fazendo a balança comercial ser movimentada sob vários aspectos derivados da escravidão. O café e a cana- de-açúcar brilhavam internacionalmente e Portugal ampliava a exploração no continente africano, devastando socialmente diversos reinos ou países e o RACISMO tomava uma proporção jamais vista na História da Humanidade. Muitos pesquisadores dizem que aproximadamente 10 milhões ou mais de negros, acabaram traficados para o Brasil.


A diáspora demonstra que provavelmente a maioria da população tenha se tornado em algum momento composta essencialmente por mestiços, indígenas e negros. Esse fenômeno determina a reflexão de Capistrano: “em 1716, o Brasil era o inferno dos negros e indígenas e o purgatório dos mestiços”. Toda a trajetória socioeconômica brasileira está diretamente correlacionada ao sofrimento do sangue negro que foi e continua sendo derramado. A exploração desmedida e covarde sempre foi uma ferramenta utilizada friamente no Brasil, subjugando o preto como ser desprezível diante dos brancos. O Massacre dos Porongos (1835-1845) no Rio Grande do Sul onde os farroupilhas cooptaram os escravos dos adversários sob a promessa da alforria, e os colocaram na frente para a morte; eles não lutavam por ideais e sim por liberdade.


Durante o período mais duro da escravidão, muitos negros cometiam o suicídio comendo terra nas lavouras. Nos seus países de origem tinham liberdade para o culto das suas religiosidades e manutenção da própria cultura, sem imposição dos brancos e seus conceitos de moralidade baseados em hipocrisia e dominação pelo racismo biológico (cor da pele) e racismo étnico-cultural (região, língua e religião). Até chegarmos em 1888, quando a Princesa Isabel pressionada pelos bancos ingleses e sem a presença do pai, assinou a Lei Áurea – supostamente acabando com a escravidão-, algo que deixou o mercado completamente contrariado, pois a mão-de-obra barata havia terminado, em princípio. E contraditados, a casta resolveu manipular os militares, provocando a Proclamação da República aos olhos dos próprios interesses.


2. A fração de Estado

Após a Proclamação da República os negros e mestiços foram jogados ao ostracismo e empurrados ao gueto. No Rio de Janeiro, após o “remodelamento” que retirou os cortiços, nasceu a primeira favela – que, aliás, tem nome de uma flor-, o Morro da Providência no centro da cidade. Negros desempregados e outros iludidos após a Guerra dos Canudos foram esquecidos de propósito sem políticas públicas sob segregação social. Se o conceito da Teoria Política descreve que o Estado é composto por população, território, soberania, constituição e cultura; chegamos à conclusão que as “favelas” são Frações de Estado. O território é bem definido – são 1577 comunidades nos 92 municípios do Rio de Janeiro- , com enorme população. A cultura é a maior força, pois não podemos esquecer, por exemplo, que o samba (uma herança do Congo) é um grito de rebeldia e, a soberania é algo muito complexo e importante.


Todos sabem que o Poder Público simplesmente abandonou as comunidades e áreas periféricas sob o óbice da exploração do caos cuja finalidade é o capital político – já dizia Carlos Lacerda, que o cano funcionando não produz votos- mantendo os pobres nas senzalas contemporâneas sob a chibata do Estado representada pelos órgãos de segurança pública, trabalhando apenas enxugando o gelo com metodologia ultrapassada. Grande exemplo é a Favela do Acari, localizada na zona norte do Rio de Janeiro às margens da Avenida Brasil. Por lá, segundo o relato dos moradores em sigilo:


“A maioria dos trabalhadores estão concentrados no CEASA, de maneira formal ou informal, entretanto, existe uma realidade paralela que a Administração Pública finge não conhecer por motivos óbvios. O Crime Organizado capitaneado pela facção TCP (terceiro comando puro) demonstra a soberania da FRAÇÃO DE ESTADO, criando uma lei interna que podemos chamar de constituição – definida por um conjunto de normas supralegais que limitam o poder Estado e Direito e Garantias – que é cumprida fielmente pelos moradores desde a mediação de conflitos aos acordos escusos sobre horário e datas das “operações policiais”. Durante duas vezes por mês, o comércio ilegal de drogas, faz uma “Lei Seca”, para o pagamento de propinas aos gestores dos batalhões e delegacias responsáveis pelo patrulhamento do arrabalde, o chefe do “tráfico” reserva uma vila na favela para abrigar negociantes de armas e drogas sob proteção; e também realiza uma espécie de “plano de previdência” onde os participantes do Crime Organizado recebem subsídios parecidos com as conhecidas aposentadorias.”


A realidade é que os órgãos de segurança pública fazem da corrupção e o costume da exploração dos negros, um negócio lucrativo, similar o que acontecia com os quilombos, grandes responsáveis pelo mercantilismo interno na época. Ora, sendo a Fração de Estado responsável pela própria gestão devido o abandono proposital do Estado e de acordo com o art. 144 da Constituição Federal de 1988, que ratifica a segurança pública como “direito de todos”, não seria o momento de reavaliar a arquitetura e metodologia das instituições? Usei como exemplo apenas uma das várias Frações de Estado, onde as pessoas que estão nesse ambiente são por maioria negra (homens, mulheres e crianças); lutando por suas vidas na senzala contemporânea. Dos 40 mil homicídios no Brasil é imperioso mostrar que a cada 100 vítimas, 70 são negras, assim como 56% dos policiais mortos também são. Nas celas dos presídios com aproximadamente 800 mil presos em nível nacional - segundo o Fórum de Segurança Pública-, quase a totalidade é preta e das 3,3 milhões de mulheres ameaçadas com armas de fogo em 2022, a supremacia também é parda e negra. O mesmo racismo que empurra pessoas no limbo da pobreza extrema corrobora com a exclusão apurando que 5,65% desses mesmos negros e pardos conseguem graduar-se numa universidade.


3. Solução?!

Não existe uma solução rápida para um país que construiu os próprios valores sobre o racismo biológico que distorceu para o estrutural. Estamos recheados de células extremistas baseadas em conceitos religiosos que não foram solidificados por liberdade, igualdade e fraternidade; e sim por pura imposição. Apesar da Constituição Federal de 1988 determinar o respeito máximo aos Direitos e Garantias e, do transconstitucionalismo mostrar por meio dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos; a sociedade brasileira está impregnada pelo preconceito ( estereótipos) e discriminação (direta e indireta) aumentando de maneira colossal a desigualdade e caminhando na contramão aos preceitos dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Social da ONU. Na Fração de Estado – que no Rio de Janeiro possui uma população de 3,7 milhões de indivíduos-, a aplicabilidade das políticas públicas precisa ser enraizada na educação, cultura e saúde e apenas sob integração setorial, a segurança pública carece atuar. A Teoria do Etiquetamento Social ( Labeling Approach Theory) sob a visão do determinismo geográfico não deve mais permear a Segurança Pública e a arquitetura dos artigos 144 e 42 da Constituição Federal de 1988 devendo ser reestruturada, remodelando todos os atores – principalmente a ultrapassada Polícia Militar- , tornando-os mais democráticos sem resquícios de uma polícia caçadora de negros fujões e especializando os profissionais no atendimento aos crimes de injúria racial, intolerância religiosa e feminicídios.


Considerações Finais

Concluo esse artigo narrando que nasci numa favela do Rio de Janeiro, no Morro da Providência, morei nas ruas de Madureira, sou filho de um estivador que veio do Maranhão e de uma maravilhosa mulher preta da favela do Jacaré. Estudei e entrei nas fileiras da Polícia Militar do Estado Rio de Janeiro, a mais violenta do Brasil e que deixou um rastro de 162% de violência letal em suas operações que jamais tiveram o escopo de promover Segurança Pública e sim concluir seus objetivos escusos e alimentar a corrupção doentia de seus comandantes em sua maioria brancos e com conceitos racistas. É imperioso que seja aplicada a Democracia Participativa na Administração Pública, criando conselhos em conjunto com o Ministério Público para observarem de perto todos os movimentos dos Órgãos de Segurança Pública do Brasil, caso contrário esse “Cinturão do Diabo” – teoria geopolítica de Haushofer – jamais acabará e nada será além de enxugar gelo e utilizar o medo como capital político aos parlamentares que procuram cada vez mais Poder Político, sem nada a ver com a soberania de uma sociedade organizada, pois o que parece mais nítido é o crescimento da Fração do Estado. Vejo o Governador do Estado noticiar o gasto de 11 milhões de reais com ferramentas para desobstrução das entradas das Frações de Estado e imagino a quantidade de crianças que não possuem acessibilidade à cultura e educação de qualidade, assim como a necessidade de aumentar a quantidade das Delegacias Especializadas nos Crimes de Intolerância Religiosa e Racismo e Crimes contra a Mulher.


O Dinheiro Público também pertence ao povo preto excluído nas senzalas da atualidade, mas a casta não gosta de filosofia, pois se tivesse cuidado intelectual iria refletir na frase de São Paulo nas Epistolas Romanas: “Nenhum de nós vive para si...” Creio na Democracia inclusiva e participativa aplicando as Regras de Mandela, e acredito na possibilidade que a equidade seja concebida como uma estrela da manhã, brilhando intensamente.




Jefferson Arouche - AxéNews

Jefferson Arouche

Jefferson Arouche é graduado em Segurança Pública, Doutor H.C Febraica/OCB, Líder Cidades RenovaBR, e Coordenador Intra e Inter-religioso do Afro-Movimente. [+ informações de Jefferson Arouche]



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