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Èṣù

Por: Babalorixá Márcio de Jagun

Ilustração: Caio Vinícius Bonifácio

Èṣù é a dialética. A polêmica contida na energia de Èṣù, diz respeito à reflexão permanente a ser estimulada como força vital do ser humano, como movimentadora da individualidade e, por conseguinte, da sociedade.


Láròyé, a saudação a Èṣù no idioma ioruba, significa “Ele é a controversia !” (Lit.: l (forma modificada da palavra ni – verbo ser) + àròyé (substantivo debate, controvérsia, discussão).


A controvérsia é o elemento constitutivo de Èṣù. Este dado merece considerações mais detidas aqui, enquanto propomos reflexões acerca da descolonialização deste importante elemento da cultura ioruba.


A palavra controvérsia é classificada como um substantivo feminino, cuja semântica significa disputa, discussão, contestação.


Já o contra-ponto da controvérsia, seria a “mansuetude”, cuja etimologia vem do latim mansuetudo, originalmente significando “acostumado à mão”, de manus, “mão” - referente a animais domesticados – “mansos”.


O vocábulo “mansuetude” é referenciado na Bíblia, e configura importante alicerce na teologia judaico-cristã . No Salmo 37:11, o salmista Davi escreve que “os mansos herdarão a terra”... (grifos nossos).Ou seja, se aos mansos cabem os bônus, a Èṣù e aos polêmicos, restam os ônus. No pensamento da colonialidade, a negatividade de Èṣù é permanentemente reforçada. As interpretações a seu respeito são completamente díspares de um entendimento coadunado com sua própria fenomenologia. O olhar ocidental sobre Èṣù, parte de uma anterioridade que se reforça por sua relação com a polêmica: o “tinhoso”, o “canhoto”, o contrário ao bem.


A capacidade de refletir/contestar/polemizar, está associada a Èṣù. Nossa condição biológica de pensar, além das condições cognitivas, requer oxigenação do cérebro (ar). Porém, o elemento primordial ligado a Èṣù é o fogo. Um dos deuses associados ao elemento ar, é Òṣàlá – o contra-ponto de Èṣù, para uns. Para mim, ambos se precisam, se completam, como fogo e oxigênio. A relação entre ar e fogo, ou entre Èṣù e Òṣàlá é polêmica, controversa? Ou será de equilíbrio e complementaridade?


[1]Cf. JAGUN, 2017. p. 1105.

[1] Fonte: https://origemdapalavra.com.br/palavras/mansuetude/. Consultado em 07.4.21.


Na cultura ioruba, os deuses são muito mais do que personagens, ou símbolos, sem querer desmerecer a importância dessas perspectivas. Mas, os entendo como forças, potências, energias que existem na natureza e nos seus fenômenos/expressões. Por isso, estão presentes em sentimentos, em emoções, que são também expressões naturais. O òrìṣà Èṣù, o Senhor da Controvérsia, por sua vez, não é um ator, mas um ativo. É o desestabilizador do status quo: o caos reconstitutivo. Um oríkì assim o declama: Èṣù jẹ òkúta dipọ́ iyọ̀ (Èṣù come pedra em vez de sal). Quer seja, Èṣù dissolve a rigidez; faz das dificuldades seu alimento; usa os obstáculos como tempero.


Èṣù desestrutura o tempo, provoca movimentos físicos e metafísicos. A controvérsia é revolução de costumes, arejamento social, revolução pessoal, é fazedora do tempo: do tempo das coisas mudarem. É oportuna uma compreensão hermenêutica de controvérsia: debate, negociação, mudança pela ação de argumentar, mover-se...


A revolta é uma emoção típica de Èṣù: provoca ação, reação. A direção que será dada a ela, não é da gestão de Èṣù, mas nossa. Pode ser construtiva, realizadora, ou destrutiva, negativa.


A controvérsia gera debate. Nem sempre entre seres, mas também inter-seres. Reflexões necessárias se estabelecem promovendo mudanças de concepções e de comportamentos. Este é o movimento exúdico. Èṣù é a dialética: a instituição de um processo de diálogo instrutivo, capaz de desestabilizar a zona de conforto.

Èṣù, não por acaso, tem como símbolo a encruzilhada. Por uma análise semiótica, podemos observar que no momento do caos, quando a controvérsia nos visita, estamos exatamente no meio de uma encruzilhada, diante de possibilidades. Muitas vezes, as dúvidas que atormentam o Ser, geram ansiedade quanto aos rumos a tomar, os caminhos a seguir. É a inércia que mais incomoda. A angústia não está relacionada à escolha para o “onde” ir. O tormento habita na anterioridade, no tempo de imobilização, no lapso da escolha do “antes” de ir. Èṣù é a inconstância do devir.


[1]oríkì: 1. s. título, nome; 2. s. louvações, relato de fatos religiosos, acontecimentos, histórias. Como a cultura ioruba é oral, a palavra tem grande poder não apenas filosófico, como religioso. A transmissão de sua ancestralidade é feita basicamente através dos ìtàn (parábolas), dos òwe (provérbios), dos oríkì (louvações) e ẹsẹ (poemas de Ifá). Todas estas formas de expressão, são lúdicas e repletas de metáforas. Não há cerimônia litúrgica para a declamação das parábolas, dos provérbios, nem dos poemas de Ifá. Contudo, o momento em que são ditos, é revestido de contrição e respeito. Sempre é alguém mais velho e sábio, que narra estas expressões milenares aos ouvintes. Até hoje nos Candomblés, mantém-se a importância dessas manifestações tradicionais da oralidade. (JAGUN, M. 2017, p. 1146).



Babalorixá Marcio de Jagun

Márcio de Jagun é escritor e dicionarista especializado em gramática ioruba, autor de sete obras publicadas. Dentre elas, Orí a Cabeça como Divindade (Litteris, 2015).

Contato: ori@ori.net.br


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