Por: Ademir Barbosa Junior
04/07/2024 | 15:15
Para tratarmos de espiritualidade e religiosidade libertárias, é importante refletir, ainda que de forma breve, sobre ética, moral e moralismo, o que faremos aqui de maneira sintética, didática e, sobretudo, por meio de exemplificações.
A ética é um conceito universal de respeito, convivência e bem-estar. Preservar a vida e, portanto, não matar, é ético. Existem nuanças nesse conceito/exemplo? Algumas circunstâncias autorizam matar determinadas formas de vida para alimentação. Quanto aos seres humanos, a preservação da vida autoriza a legítima defesa (e mesmo a morte em dadas circunstâncias pode ser desautorizada caso seja comprovada como desnecessária no processo de legítima defesa). Como a ética é universal, quando se fala, por exemplo, de ética médica, evoca-se um feixe comum de valores a todos os médicos, independentemente de país de origem, especialidade etc. O mesmo vale para o conceito de ética cristã e outros.
A moral, por sua vez, é uma orientação comportamental afeita ao tempo e ao espaço. Para facilitar sua compreensão, é importante emparelhá-la com a ética, a fim de perceber-lhes as diferenças conceituais. Há um século, por exemplo, se um marido, ao sair para trabalhar, desse um selinho na esposa, no portão de casa, isso seria considerado imoral em muitos lugares e por determinados grupos sociais, mesmo se tratando de um casal legitimado pela sociedade (marido e mulher), com papéis definidos por essa mesma sociedade (marido trabalhando fora, mulher como dona de casa). Entretanto, embora imoral no tempo e no espaço, esse selinho seria antiético, uma vez que houve consentimento entre as partes?
Outro exemplo: se matar outro ser humano é antiético, pode não ser imoral para determinadas comunidades nas quais se evoca não o direito à vida (legítima defesa), mas o direito à honra (caso de relações do feminino “ofensivas” a pais, irmãos, maridos etc.). Nesse caso, aquilo que se considera moral, muitas vezes é incorporado pelo sistema legal. Ainda nesse sentido, a ética cristã prima pela vida humana, enquanto certa moral cristã foi (e ainda é) responsável por muitas mortes e violações de direito.
A partir desses exemplos, note-se que a ética e a moral muitas vezes são incompatíveis e mesmo contraditórias.
E quanto ao moralismo?
O moralismo, a seu turno, é um espetáculo programado em total contradição entre o que se apresenta no palco e o que ocorre nos bastidores, na coxia. Para tanto, o moralismo não aceita a diversidade, uma vez que ela afronta o status quo daquilo que se pretende manter como padrão, como normatividade. Exemplo bastante comum é a guerra (inclusive com homicídios) que setores conservadores promovem contra toda manifestação que não heteronormativa enquanto muitos desses mesmos setores vivem relações lgbtqia+, muitas vezes de maneira (auto)destrutiva. É o moralismo, ainda, que leva o indivíduo a procurar garotos e garotas de programa à noite e, pela manhã, condenar esses mesmos garotos e garotas a um inferno de penas eternas por “imoralidade”. O moralismo explicita bem o conceito de que todo excesso esconde uma falta. Ao promover dicotomias individuais e coletivas, desintegra a unidade do indivíduo, avilta a diversidade, a pluralidade, a criatividade. Por natureza, é anti-holístico, posto que unilateral e segmentado.
Pensemos na seguinte situação: duas pessoas se conhecem e resolvem ter um relacionamento afetivo-sexual. Ambas sabem que será temporário (porque assim o desejam, uma delas vai se mudar em breve etc.) e resolvem vivenciá-lo. Esse relacionamento pode ser encarado da seguinte maneira:
O quadro é sintético, pois há outras tantas variações, sobretudo no que tange às colunas “Moral” e “Moralismo”, contudo serve para nortear a compreensão dos conceitos, além de exemplificá-los.
Uma das estratégias cruéis do moralismo, para a manutenção do status quo, é o cerceamento da liberdade alheia por meio da imposição de padrões supostamente chancelados pelo sagrado. Assim, ferir a heteronormatividade, por exemplo, além de ser considerado errado, afastaria o indivíduo da Divindade. Dessa maneira, tem-se uma condenação civil, espiritual, religiosa: mesmo em comunidades onde não existam leis civis condenando indivíduos não-hétero, estes convivem com a condenação moral alheia e, muitas vezes, com a culpa, com a condenação interna. Contudo, conforme vimos acima, o moralismo é moeda de dupla face, logo a hipocrisia se evidencia quando a face escondida vem à tona: quantos líderes religiosos que propalam a chamada “cura gay” não mantêm relacionamentos homossexuais, inclusive de caráter (auto)destrutivo e com apelo à pornografia e à prostituição1 ? Aliás, viria dessa associação o “argumento” rasteiro de que a comunidade lgbtqia+ é promíscua e fadada à prostituição e à pornografia?
Conforme vimos, o moralismo desintegra. Separa palavra e ação. Todo mundo já ouviu “Faça o que eu mando, não faça o que eu faço!”. Segundo a ótica moralista, essa assertiva faz muito sentido principalmente quando se descobre o oculto “o que eu faço”. Esse é o momento preciso em que deve preponderar o “faça o que eu mando”, segundo a lógica de que a ação dos bastidores, da coxia, não invalida a representação moralista no palco. O moralismo visa a manter toda sorte de privilégios, inclusive o de ser quem realmente se deseja, ainda que em pequena escala e com distorções diversas, nos bastidores. Segundo a ótica conservadora, isso precisa ser regrado, tanto na intensidade (os bastidores representam uma pequena parcela de tempo e energia diante do espetáculo moralista, que envolve o indivíduo na maior parte do tempo) quanto na acessibilidade (apenas os “eleitos” têm direito a ser quem são, mesmo que às escondidas, com distorções e em momentos restritos: aos demais, o jugo comportamental, a perseguição etc.). Nesse contexto, toda e qualquer iniciativa reflexiva e libertária mostram-se “perigosas” aos setores conservadores, haja vista a resistência à chamada educação sexual nas escolas, a qual, além de promover a reflexão sobre o tema com naturalidade, dentre outros, visa a alertar e empoderar crianças e adolescentes contra abusos cometidos notadamente dentro de casa pelos próprios familiares.
O moralismo está presente logo nas primeiras fases da educação familiar. Quantas crianças, por exemplo, não ouviram de um adulto que deveriam passar margarina em apenas um dos lados do pão francês e depois flagraram esse adulto besuntando ambos os lados do pão? “Farinha pouca, meu pirão primeiro!” Privilégios se mantêm com o sacrifício alheio, com o regramento dos sentidos do outro, enquanto os sentidos de quem se apoia no moralismo se regalam, ainda que às escondidas.
Não se pretende aqui aprofundar a reflexão sobre ética e moral. Numa experiência holística de espiritualidade e religiosidade, de acolhimento e de respeito à diversidade, compreende-se que não faz sentido a moral contradizer a ética. Certamente a contradição entre ética e moral, bem como o moralismo, ocorrem em determinados segmentos ou terreiros, não por determinação da Espiritualidade, mas pela visão de mundo de dirigentes espirituais, médiuns e assistência, bem como pelos preconceitos e pelas concepções dissociadas de vivência espiritual que cada qual carrega. Por esse motivo, além de ouvir atentamente as lições da Espiritualidade, é importante compreender o fim último de toda agremiação espiritual e religiosa - o desenvolvimento pleno do ser humano - e, sobretudo, vivenciar o acolhimento e o diálogo2, entender o contexto social de marginalização e exclusão e colocar em prática estratégias para que tal acolhimento, nos terreiros, seja integral.
Portanto, uma espiritualidade libertária não pretende regular as vivências individuais e interpessoais quanto ao erótico e à sexualidade. Em vez disso, respeita o livre-arbítrio e a diversidade (de gêneros, dentre outras), não engendra ameaças ou desvaloriza o corpo físico. Apresenta como parâmetros para o bem-estar pessoal e coletivo a responsabilidade, a lei de afinidades energéticas e a lei e ação e reação. Dessa maneira, não retira de ninguém o protagonismo na construção e nas manifestações da identidade sexual.
Moralismo e condenações, portanto, não cabem nem da parte dos dirigentes espirituais para com a comunidade e nem desta para com os dirigentes. Respeitam-se as experiências e vivências individuais não se fixando parâmetros conforme a orientação, as preferências, os gostos de cada um, dirigentes ou demais membros da comunidade, ou seja, a moral pessoal ou particularizada não pode regrar a ética, de caráter universal. Aliás, trazer à baila a vida sexual de outrem, fora de contexto, é caminho aberto para fofocas e detratações, situação incompatível com a ética e a moral espiritualistas-religiosas.
Por outro lado, situações como as de violência sexual, violência doméstica, pedofilia e outras não podem ser abafadas, e sim acolhidas e cuidadas tanto no âmbito familiar-espiritual quanto nos aspectos legais. Omitir auxílio às vítimas sob o pretexto de suposta elevação espiritual é reforçar a ação do agressor e violentar novamente a vítima, além de se desrespeitar o próprio conceito de justiça3.
1 Ao condenar o corpo, a sexualidade e o sexo, o moralismo (mais uma vez e sempre) mascara questões como pornografia e prostituição, onde, de fato, corpo, sexualidade e sexo não são o cerne do problema, mas a subjugação e a mercantilização desses elementos, pelo consumo essencial (subsistência) ou pelo consumismo (profissionais do sexo com altos ganhos financeiros). O sistema social e econômico necrosado perverte o desejo, os afetos, performando-os conforme convenções moralistas e o valor de mercado.
2 Em alguns de meus livros cito o ensinamento do Caboclo Pena Branca (médium Mãe Paula Rodrigues - Piracicaba - SP) que há muitos anos me leva a reflexões constantes: “Ser espiritualizado é aprender a conviver com as diferenças e a ingratidão.” Note-se que o conceito de espiritualidade não é dissociado do acolhimento e da vida cotidiana.
3 A justiça, temperada pela compaixão, não é excludente, portanto cobre tanto o agressor quanto a vítima, porém sem aviltar a dignidade desta última.
Ademir Barbosa Junior
Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]
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|| Este é um artigo de opinião em que o(a) autor(a) apresenta e defende seu ponto de vista acerca de um tema de relevância para as nossas comunidades tradicionais de terreiros.
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